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Dadivosa
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Dadivosa

Tipo Crônica

Dadivosa era mulher para homem nenhum botar defeito. E não apenas homem, pois mesmo as mulheres, que sabemos ter o olhar microscópio e imperdoável para as falhas congêneres, nela, exaltavam: “É perfeita!”
Quando saía à rua, ao final da tarde, pintava de céu aquele chão. Todos queriam saudá-la, dignar-se um seu sorriso – lindo demais, ai, meu Deus –, ouvir de sua voz o cantar de “boa tarde”, tão feliz quanto o sonoro anúncio do carro do pão. Meninos corriam à sua volta, homens e mulheres se digladiavam às brechas de portas e janelas, até os artríticos velhinhos se punham em pé. Faltava muito pouco para ser santa ou milagreira.

No entanto, na vizinhança, um mistério passou a rondar a moça.

Marcelo, um rapaz que cresceu no bairro com a fama de “bicho-papão”, jurava ter emplacado um discreto romance com ela. Mas, quem diria, depois disso, mudou completamente. Parou de beber, sair às festas, conversar com amigos, largou o emprego e, por fim, mudou-se de cidade. Porém, antes de partir, confidenciou ao Maneco, garçom do bar predileto: “O homem que tem a Dadivosa não presta mais”.

Confessionário de bar não guarda segredo e, de boca a boca, aquele enigma passou a atiçar a outros militantes do amor livre, que, cada um a seu estilo, se aproximavam da moça com o mero intuito de quebrar aquele tabu. Mas, era regra: após todo o farol dos primeiros dias, contados em salão para ouvidos curiosos, os outrora confiantes galanteadores se rendiam ao anonimato completamente e confirmavam: “Homem que tem a Dadivosa não presta mais! Presta mais não”.

Genésio, moço bonito e com autoestima de 13 andares, recém-chegado na cidade, quando soube do fuxico, zombou: “Cambada de macho frouxo... Pois eu mostro como se doma uma potrinha. Cadê Dadivosa? Cadê?”

Como cena de filme, justo naquele instante, ela cruzava ritualmente a rua. Aqueles homens emudeceram e Genésio, entendendo ser aquela o seu alvo, não negou: “Uma bicha dessas deixa um cabra atoleimado... Me aguarde...” Alegres, os papudinhos abriram apostas e pagaram muita cerveja para o valente moço.

Não tardou e ele chegaria à solitária Dadivosa, muito calada e então encantada com o seu palavrório experiente e sentimental. Um pulo para, com jeito, convencê-la a ir a um motelzinho de beira de estrada, por que na cidade “não tinha coragem, não... Imagina!”

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Genésio se sentia um Deus, tendo aos seus pés o olhar doce e quase virginal da jovem, até que, ao fechar a porta do quarto, sentiu quando ela puxou agressivamente suas roupas, rasgando-as. Ele, surpreso, a princípio, pedia-lhe calma. Porém, ela, ensandecida, não o atendia: dava-lhe na cara, o arrastava pelo chão, mordia seus dedos e ombros, se jogava por cima, puxava-lhe os cabelos e os pelos, berrava alto e gargalhava o tempo todo, a ponto de o rapaz quase desmaiar de desespero e de dor. Genésio pedia para parar, “jogava a toalha”, sentia-se mal, agarrou-se à maçaneta da porta, mas ela o trazia de volta todas as vezes até não poder mais...

Passados alguns dias, os amigos de bar, acostumados ao paradeiro daqueles pretendentes à Dadivosa, já dividiam o fruto das apostas, quando Genésio apareceu. A turma comemorou. Contudo, ele nada falou, apenas sorria trêmulo num canto de boca.

Não confessaria, mas quando Dadivosa o procurou no dia seguinte, não atendeu. Dissessem que não estava, que ninguém sabia dele ou que morreu. À noite, em seu quarto de pensão, deitava na cama o seu corpo ainda todo arroxeado e se esforçava para dormir no travesseiro molhado de suor e lágrimas, forrado de pesadelos intermináveis com aquela cruel e insaciável devoradora de homens.

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