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Diorama
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Diorama

A campainha da porta tilintava anunciando a saída de Júlio, o servente da "Diorama", uma loja de taxidermia. O rapaz não escondia de ninguém, nem do patrão, o seu descontentamento com aquele emprego, mas sem outra opção no momento....

O estabelecimento pertencia ao sr. Vitório, homem velho, amargurado, de físico atarracado e ar sombrio, mas extremamente habilidoso com as mãos quando de seu ofício de dar "vida" a animais mortos.

Todos os dias, Júlio chegava à tarde e mal recebia um bom-dia de seu patrão, liturgicamente empastado por trás de sua mesa de trabalho, avental e mãos sujos de argila ou gesso e os olhos espremidos no mirar profundo de um corpo devassado.

Ali, não havia janelas. À luz apenas de pequenos faróis - e de alguma nesga intrusa de vitrais coloridos da porta -, as sombras tremeluziam no ar inebriado de solidão e silêncios imorredouros. Por todos os lados, prateleiras de livros de zoologia, carcaças, ossos e recipientes de vidro com vísceras conservadas em formol ou álcool, e paredes, teto e assoalho entulhados de animais "perpetuados" - ou partes deles: macacos, felinos - dos pequenos aos de grande porte -, psitacídeos de diversas cores, cães, tucanos, guarás, gaviões, cobras, iguanas etc.

Pegava a vassoura, o espanador e iniciava a limpeza, assistindo de esguelha ao trabalho meticuloso de Vitório, a compor máscaras mortuárias, conferir medidas corporais, manipular manequins de arames e moldes de resina, curtir peles e couro, colando-os e costurando-os pacientemente. Não admitia, enquanto isso, "perguntas tolas", a não ser quando ele mesmo - o que acontecia raramente - terminava a sua peça e, numa admiração michelângica, chegava-lhe junto, maravilhado, impondo aqueles cadáveres revividos aos seus olhos, numa glorificação sinistra e quase divina de sua arte. Depois, a passos leves de se andar em nuvens, conversava com seus animais, chamava-lhes pelo nome, acarinhava-os a penugem ou o pelo, maternalmente admirando-os através dos olhos de vidro coloridos e brilhantes de próteses cuidadosamente escolhidas.

Vitório não era querido na vizinhança. "Diorama", que mais lhes parecia uma casa dos horrores, destoava do bairro a evoluir para um comércio elegante, de avenida próspera e voltada para o futuro. Da mesma forma, os poucos clientes que lhe restaram pareciam tão sombrios e excêntricos quanto ele.

Naquela noite, a campainha tocara uma segunda vez. Vitório, iluminado apenas pela sua luminária de mesa, desconfiou e a direcionou à porta, assistindo o aproximar de um estranho segurando um punhal: "Me passa tudo que tem, velho, senão acabo com você!"

Vitório, como se o ignorasse, mandou: "Fosse embora!". O bandido, alucinado, pulou sobre ele, derrubando-o no chão. Agarrou-o violentamente pelas alças do avental e o ameaçou. Mas o velho, indiferente, insistiu: "Eu não tenho nada... Mate-me!"

Irado, iniciou-se a pancadaria. Se não dinheiro, qualquer coisa, mas dali não sairia de mãos abanando. Nisso, o salão é tomado por sons estranhos, crescentes e ensurdecedores: rugidos, guinchos, grunhidos, berros, piados estridentes, passos e bater renitente de asas. Assustado, o larápio, diante das sombras no escuro, tapava os ouvidos, quando sentiu saltarem por todos os lados sobre ele, mordendo-o, bicando-lhe os olhos, rasgando seu rosto e sua pele com garras potentes. Ele gritava, até algo comprimir o seu pescoço, e, mudo, buscou em vão o seu punhal...

Na tarde seguinte, Júlio chegava à loja. O cheiro de químicos no ar. Estranhou a ausência do velho, os livros dispersos, vidros quebrados, gaiolas e paredes vazias. Não havia mais animais, apenas dependurado no alto da parede um corpo humano, um tanto disforme, estripado e com grandes olhos brilhantes de vidro.

 

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