Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.
Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.
Deu-se que assim quedou-se sozinha numa quitinete antiga, inda duro de pagar, aos maus cuidados do esquecimento. Tentaria, mas voltar para casa dos pais, nem pensamento, nem coragem.
Angustiava-lhe, contudo, o banheiro. Às horas escuras, as baratas reinavam. Por vezes, queria usá-lo, mas à visão nojenta e aterradora de dezenas delas desistia-lhe a vontade. Percebia-lhes nas gretas da parede, nas frinchas do piso, no descuido do ralo, por todos os cantos. Saíam elas protegidas, ligeiras, com propriedade tradicional de uso.
No abrigo escuro da noite, no travesseiro, além do seu cheiro em tudo, podia ouvir centenas de terríveis patas a deslizar. Corriam, acasalavam-se. Mais baratas, cada vez mais. Pânico!
Ao banheiro, quando inevitável, sentava-se no aparelho: abraçada aos joelhos, encolhia as pernas e acompanhava de olhar para cima a lâmpada num estalar piscativa. Sabia, a qualquer momento de saltar pela porta nunca fechada. Angustiava-se a chorar. Arrependimento matasse, morria.
Pela manhã, acendia a luz do banho, e assim a deixava, por tempo, com suficiência para dominar o território, anunciar o tratado de paz: baratas e ela. Só depois se encorajaria ao chuveiro, sempre alerta ao descuido de uma ou de outra a apresentar-se sem respeito à suposta trégua.
Esforçava-se, por isso, a passar o dia fora: em busca do emprego, a merendar, a pretexto de visita, em casa de amigas, a encostar-se no banco da pracinha, a repensar a volta no último degrau da escada.
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Na quitinete, quando vencida, olhava pela porta do banheiro e lá estavam as malditas.
Naquela noite, o calor sufocava. Sem banhar-se, sem o sono, enlouquecia.
Acendeu a luz. Alvoroço entre os insetos. Pacto rompido. Recuaram. Silêncio.
A moça se despiu. Pendurou as roupas em inalcançáveis. Passos inseguros a encostaram a um canto. Pronto. Imaginou: "a água as espanta!"
Molhava o corpo nu, alvo e belo, quando a lâmpada deu último estalo e caiu com a noite. Escuro absoluto. Silêncio quebrado. Centenas de patas. O derradeiro grito se ouviu, agonioso, devorado por seguinte silêncio a ecoar até a chegada de outra moça fugidiça a responder ao convite da tabuleta de frente do prédio: "Temos Vagas".
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