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Domingo
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Domingo

Domingo. Onze horas. Como se marcada hora, barulhentos, acabavam de chegar. Enfileiravam-se à grade branca entreaberta por saudações breves, tomadas de rostos, beijos vãos. As netinhas, em cabelos de rabos de cavalos, à frente e com solicitação do pai, apresentavam as bonecas, imediatamente esquecidas diante da tevê na sala.

Os filhos, genros e noras, à cozinha, traziam nos olhos indisfarçáveis traços da preguiça ou da curtida noite alta. Colhiam jornais e a correspondência desviada, cumprimentavam o pai a levantar sorridente da cama — sem omitir saudades — e a mãe a empunhar flores do quintal. Puxavam os bancos para o oitão, a área mais ventilada, enquanto outros vasculhavam a geladeira em busca das guloseimas que lá já não estavam desde a meninice.

Hora do almoço! Todos tomavam os seus lugares, os mesmos e respeitados lugares, pequenas hierarquias. O avô se deliciava à larga cabeceira da mesa de pinho feita à encomenda para caber a família. A avó não sentava enquanto todos não estivessem fartos. Uma mulher, por trás do balcão americano, com olhos postos à pia no manejo da asa de uma caneca tomada em sabão, ouvia tudo, sabia de tudo, analisava-os, percebia-lhes as mentiras, as vaidades, a disputa entre irmãos pelo amor filial. Espremia-lhes com os olhos e torcia a inveja da boca.

Assim, aos domingos: preparava o almoço, os pratos de um e de outro, mais pratos, a sobremesa com um doce especial, a correria da criançada a lhe pedir tudo, sem reconhecê-la nunca, sequer chamá-la pelo nome, e mais pratos. Depois disso, só solidão e silêncio. Percebia-se velha e acabada, não dava mais conta. Sabia-se apenas para servir. E só!

Num domingo diferente, postou-se à cabeceira por trás do avô. Pediu as falas com um sorriso quase terno, a espanar no ar um pano de prato. Na voz rouca e analfabeta desalinhou um segredo: pôs veneno! Daquela macarronada tradicional de família, tudo acabaria ali e agora. Pronto era só isso. Desculpasse, mas não aguentava mais.

Um jovem pai desperta, corre desesperado por um corredor de soluços, vômitos e gritarias sufocadas. Na sala, as suas menininhas, felizes, limpavam com o bracinho rechonchudo o sorriso lambuzado daquele molho gostoso, receita da vovó.

 

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