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Resignada Mente
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Resignada Mente

Tipo Crônica

Jacó era um bruto, mas só dentro de casa. Na rua, era conhecido pelo seu coração amantíssimo, vivendo na comovente disciplina do pecado, mais plural do que a letra "S", talvez a mesma usada pelos sultões sauditas ao amealhar seu vasto harém.

Disposto e com tempo de sobra, lançava-se ao vento, principalmente quando este lhe chegava com fragrâncias femininas. Para elas, tinha um faro extraordinário. Então, o homem se entregava molinho, molinho, feito almofada de sofá antigo.

Não raro, algumas se interessavam incondicionalmente por sua perfeita cafajestice. Outras, porém, ao perceberem a larga aliança dourada na mão esquerda, quase sempre enfiada no bolso, se frustravam: "Só podia ser... um tipão desses, né?" Mas Jacó não perdia a pose e contornava a situação com uma rodrigueana de efeito: "O casamento é o máximo da solidão com o mínimo de privacidade. É ou não é?"

Amélia, a esposa, era manicure, pedicure e designer de sobrancelhas. Não fosse atender a domicílio, mal saía de casa, arrumando-a, lavando roupa e preparando a refeição para quando o marido chegasse e se chegasse.

Você pode até pensar o quão infeliz ela deveria ser, contudo, dizia-se a mulher mais feliz do mundo. Às clientes, confessava numa sinceridade suicida: "É o amor da minha vida. A melhor coisa que me aconteceu. Sem ele não sei viver".

De fato, durante o namoro e nos primeiros anos, poderia até ser possível uma tal felicidade, mas o tempo, associado a dividas intermináveis, à rasa e abundante programação da TV e uma boa dose de tédio, massacra qualquer boa intenção.

No caso, Jacó se rendeu a uma liberdade promíscua, enquanto coube a Amélia suportar esse amor de casal inteirinho para si. Era, como toda mocinha de novela, feliz e pronto, apesar da rádio calçada, ao pé da janela da cozinha, anunciar-lhe em detalhes megafônicos as aventuras do marido.

Também as irmãs, amigas, vizinhas, clientes, mesmo quando tinham maridos tão ruins ou piores do que Jacó, insistiam no papo reto, de mãos dadas à liturgia divorcial - alguém, que não serei eu, tem que se separar primeiro... - e apontavam os defeitos do marido alheio, com rancor e intolerância, além de uma curiosa propriedade.

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Numa roda de salão improvisado, uma das clientes apontou que o carro de Jacó fora visto estacionado na esquina de um tal apartamento. Sem tirar a vista da serrinha de unha, Amélia justificou: "Ele adora caminhar na praça em frente. Quer manter a forma. Um lindo!" Outra vira Jacó em um telefone público a poucos quarteirões de casa. Preocupou-se: "Meu Deus, será que esqueceu novamente o celular no trabalho? Ele é tão responsável..." Seria verdade que ela encontrara uma mancha de batom no colarinho dele? Até riu: "Sim, mulher, a minha sogra adora usar batons extravagantes. Ele deixa. É desapegado e tão amável..." Dizem que ele estava na praia, conversando com aquelazinha, conhecida pela má fama... Claro: "Ah, ele adora pegar um solzinho e não tem preconceito, não. Dá atenção a todo mundo". Você sabia que ontem ele estava entrando com umas compras no apartamento daquela sirigaita? Quase bateu nos peitos: "Humm, acho que ele me disse... É tão altruísta. Um cavalheiro". Exasperada com a ingenuidade da moça, uma delas rosnou: "Abre os olhos, criatura, só você não vê que ele não a ama!!!".

Nessa hora, todas se calaram estupefatas diante da ousada e medonha sentença da amiga. Amélia, como se despertasse de um sonho de algodão doce, levantou-se de seu banquinho, atirou para o lado a toalhinha e a ternura e, indignada, tascou: "Ah, minha filha, aí já seria sorte demais!"

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