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Amante (Parte final)
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Amante (Parte final)

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Vitória quedou-se no piso do quarto de Ramon durante um bom tempo a chorar. Jandira havia vendido, doado e até queimado o que restara de lembranças do irmão. Vitória não imaginava o quanto as suas idas àquela casa a perturbava. Entretanto, estava certa: tinha que parar. Ergueu-se, despediu-se de Jandira e, arruinada, voltou para casa. Aproveitando o silêncio do apartamento, tirou da bolsa o seu estojo de pintura e colheu de lá a mecha grisalha arrebatada do seu banheiro. Sorriu: "Afinal, só me restou você!". Dirigiu-se ao closet e entre as caixas de sapatos retirou a mais velha, aquela na qual ainda guardava pequenas recordações. Sentada na cama, abriu a tampa e procurou algo para acomodar aquela mecha. Fazia tempo não mexia ali. Qual não foi a sua surpresa quando, no fundo da caixa, em meio a fitas K-7, fotos embaçadas de máquina "Love", monóculos, chaveirinhos, cartões dourados de Natal, canetinhas secas, terços infantis, encontrou um pequeno porta-joias e, dentro dele, a aliança, a mesma que há pouco comentara com Virgínia: "Não é possível!" Não se recordava de tê-la guardado, mas ali estava, como uma memória oculta, completamente ignorada por quase trinta anos. Era uma aliança barata, de uma doçura adormecida, escurecida em alguns pontos. Tentou colocar no dedo, mas não cabia. Sorriu novamente: "Nunca fora minha." Colocou-a de volta no porta-joias, desta vez, ao lado da mecha: "Perfeito."

Cinco anos depois, Vitória e Virgínia estariam novamente ao centro da mesa de um badalado café da cidade, rodeadas pelas colegas do colégio, relembrando e reinventando histórias que só Deus sabe até onde havia alguma verdade. Mas quer saber? Isso não importava. Elas se divertiam e alegravam a todas, rejuvenescidas, radiantes, a dividir emoções, a cantar ou arriscar passos de dancinhas antigas, até mesmo a chorar pelas suas perdas, mas nunca mais sozinhas. De vez em quando, ouviam: "E o Ramon, hein, namorou as duas! Ele era mesmo um safado..." Vitória e Virgínia se entreolhavam. Quem quisesse, perceberia de pronto naquela troca de olhares um misto de ternura e dor, mas elas logo se voltavam e debochadamente respondiam: "Ele era, sim, um enorme safado!" E aquelas gargalhadas soavam como uma libertação, desapegadas e emocionantes.

Naquele tempo, Vitória não deixou de se comunicar com Jandira. Ligava sempre e, quando possível, a visitava. Tomando chá, conversavam na sala sobre assuntos corriqueiros e femininos. Vitória evitava falar em Ramon, Jandira, curiosamente, mais, embora a chamasse jocosamente de "cunhadinha". Mas quando Jandira ia à cozinha, era difícil Vitória não dirigir um olhar pesaroso àquele quarto, agora tomado pelas coisas da irmã. E foi nesse período que Jandira descobriu um câncer. Sozinha e com poucos amigos, sem ter carro ou companhia, Vitória a acompanharia às consultas médicas e às terapias. Comprava-lhe medicamentos, fazia o supermercado e a confortava. Porém não tardaria a partida de Jandira, não antes de manifestar diversas vezes a sua gratidão e a felicidade por aquela amizade tão querida, mesmo ao entardecer de sua vida.

Vitória se tornou uma mulher feliz como poucas que conheci. Tinha suas dores, seus medos, seus conflitos, como qualquer ser humano, mas nada disso a abalava. Para os familiares, amigos e colegas sempre tinha bom ouvido, um ombro amigo, além das impagáveis tiradas de espírito. Com a idade, foi se desligando das certezas, não dava tanto espaço para elas, por entender que, ao mesmo tempo que nos oferecem suposta segurança, nos aprisionam. A dúvida, sim, é um ninho sedutor de delícias e possibilidades.

Desde quando visitou pela última vez os pertences do quarto de Ramon, todos os anos, em seu aniversário, Vitória visita o seu jazigo. Senta-se no meio-fio, coloca ao seu lado uma garrafa térmica de café e deita em sua lápide um buquê de lírios azuis, em "amor eterno", como ele dizia. Sem pressa, conversa com ele. Pede-lhe paciência, pois história tem é muita: "São tantos anos perdidos, né?" Quem vê aquela mulher muito branca ali, pensa tratar-se de uma viúva ou mesmo de uma inconsolável mãe. O que eles não veem, nem poderiam, pois não é do homem o domínio das coisas da vida, do coração e da morte, é o pulsar desperto emanado daqueles lírios agora tão azuis quanto o céu que nos veste.

FIM

 

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