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Ziraldo no Ceará (Parte Final)
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Ziraldo no Ceará (Parte Final)

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Tipo Crônica
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O voo do Ziraldo partia por volta do meio-dia e por isso, muito cedo, eu já estava no hotel para pegá-lo e levá-lo à revistaria do Silvyo Amarante.

Durante o percurso, ele ligava para alguém. Contava alguma piada breve sobre "chifre" e outros temas curiosamente do gosto masculino e logo perguntava por que aquela pessoa não havia ido ao aniversário da Márcia, a sua esposa: "Rapaz, liga para Márcia, diz que estava doente, fala qualquer coisa, pois ela estranhou muito a sua ausência. Sério, só faltou você! Liga pra ela, liga!" Até chegarmos à loja do Silvyo - e depois que saímos de lá -, ele deve ter ligado para umas oito pessoas dizendo e pedindo a mesma coisa: "Só faltou você, meu amigo, liga pra ela, liga!"

Entre uma ligação e outra, me perguntava qualquer coisa sobre a cidade, sobre um ou outro artista e se indagava porque não tinha aceito participar de um evento no qual teria sido convidado no passado: "Raymundo, você sabe que eu só aceitei vir porque era no Ceará. Você está me pagando uma pechincha". Respondi: "É mesmo? E você sabe que você foi, entre todos, o último e o único artista com quem negociei diretamente o cachê?" Deu uma risada: "Vejam só, negociei com a pessoa errada!" Finalmente, chegamos.

O Silvyo o recebeu com a alegria de sempre. Além de sofisticado colecionador de revistas dos mais diversos gêneros, é inteligentíssimo e tem uma memória privilegiada. Cinéfilo, excelente contador de histórias e piadas, jogador compulsivo de frescobol, nas horas vagas se dá ao exercício de elaborar poemas quase épicos, utilizando palavras que se iniciam com uma única letra, como a obra "Mundografia Moderna", cujo prefácio é de Chico Anysio, humorista que utilizava os versos do Silvyo em algumas de suas apresentações em teatros ou na TV.

Claro, o Silvyo o conduziria a caminhar pelo fantástico labirinto de estantes e caixas que é a sua "Fortaleza da Solidão", apresentando não apenas as raríssimas coleções de revistas, miniaturas e estatuetas de personagens de quadrinhos, como também acervos de ilustrações de artistas nacionais e internacionais. Entre eles, o nosso saudoso Al Rio.

Diante de tantos nomes de peso, o Ziraldo não se fez de rogado e, num pedaço de parede, deixou também rabiscado um seu Menino Maluquinho a saudar o grande Silvyo que, aliás, também foi um dos palestrantes convidados naquela Bienal.

Ziraldo, durante o "passeio", ia pedindo uma coisa e outra, colhendo "flores daquele jardim". Depois, sentou-se na banqueta do Silvyo, na entrada da loja, atendeu telefonemas, foi fotografado pelos clientes que o reconheceram, contou algumas outras histórias e, depois, tomamos o rumo direto para o aeroporto. Entre as aquisições, as Playboy da Xuxa e da Luiza Brunet: "Vou levar. Acredita que eu nunca vi?"

No aeroporto, o problema era: tinha que comprar qualquer coisa para colocar o grande número de livros e revistas que ele havia ganhado e comprado. Não foi fácil. "O aeroporto de vocês é muito pequenininho..." Mas conseguimos. Quando na hora de guardar tudo na bolsa - "A Márcia não sabe mais o que fazer com tanta bolsa" -, ele perguntou: "E você não escreve? Cadê os seus livros?" Não tinha levado nada. Fiquei de enviar depois. Nunca o fiz. E assim nos despedimos. Cheguei a ligar para ele umas duas vezes, no máximo. As lembranças, praticamente todas, de sua vinda e companhia, estão aqui registradas. Foram apenas dois dias, mas memoráveis. Com a sua derradeira partida, todas essas passagens pintadas há 14 anos me voltam à mente. Tão distantes, que sinto como se fora um filme antigo. Esforço-me para lembrar mais detalhes, todos, porém muitos se perderam irrecuperavelmente, assim como a minha coleção da Turma do Pererê, valiosamente ali autografada, contudo, degustada criminosamente por meus vis cupins.

Foto do Raymundo Netto

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