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Praia de Iracema: uma vitória para quem?
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

Praia de Iracema: uma vitória para quem?

Não era novidade: rico se incomoda com o pobre, não gosta de tê-lo como vizinho – nem de vê-lo prosperar –, por isso surgiram os bairros de Jacarecanga, Aldeota e agora a Praia de Iracema
Tipo Crônica
Iracema Guerreira, um símbolo de Fortaleza na Praia de Iracema
 (Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMA Iracema Guerreira, um símbolo de Fortaleza na Praia de Iracema

Comecemos essa boa prosa durante o nosso habitual café da manhã esclarecendo uma dúvida que percebo nebular em alguns: "a Praia de Iracema tem apenas 100 anos?"

Claro que não! Durante toda a existência terrena, sabe-se lá Deus quando minou, diante de tantos acidentes geomorfológicos, esse marzinho em nossa costa desposada do sol. O que está sendo celebrado como centenário em 2025, na verdade, é apenas a mudança da denominação antiga da região, "Praia do Peixe", para uma nova, "Praia de Iracema".

E, de fato e por lei, essa mudança aconteceu no dia 7 de maio de 1925.

Atentemos que, até o início da década de 1920, não se brigava para morar diante do mar. Ao contrário, quem morasse ali, construía as suas casas de costas para a incômoda e zoadenta seleção de ondas e coleção de areias. Os pescadores, sim, por uma questão muito lógica e prática, residiam por ali, em casas humildes feitas de taipa ou mesmo em palhoças. Na praia, esses nativos guardavam as suas jangadas e instrumentos de pesca. Naquela região, eram procurados por comerciantes de feira ou mesmo por pregoeiros individuais, que compravam o fruto de seu trabalho. Ali mesmo os pescadores, quando preciso, tratavam essa pesca. Isso, naturalmente, liberava um odor não muito agradável para os novos veranistas da elite cafuçu cearense.

Daí, chegou-se um tempo em que aumentou o número de casas e bangalôs na região litoral. Ter um imóvel de veraneio na praia passou a ser chique e saudável. Foi quando começaram a achar ruim morar na Praia do Peixe. O Nordeste: vespertino de ação e informação católica, um dos jornais mais conservadores e atrasados do estado, afirmou: "[...] afinal, hão de todos convir que é de fato grotesco apelidar-se, assim tão feiamente, uma das nossas formosas praias, habitadas pelo escol social fortalezense, na época mais agradável do ano. [...] Aquela estação balnear, com os seus confortáveis chalés de estilo moderno, requer, por certo, outra denominação menos repulsiva".

Não era novidade: rico se incomoda com o pobre, não gosta de tê-lo como vizinho - nem de vê-lo prosperar -, por isso surgiram os bairros de Jacarecanga, Aldeota e agora a Praia de Iracema. Maria Adília Albuquerque de Moraes, uma das pioneiras feministas do Ceará, intelectual e residente no local, na revista Ceará Ilustrado, de Demócrito Rocha e Tancredo Morais (seu marido), também não gostava daquele nome e passou a chamá-lo em seus textos, por conta própria, de Praia de Iracema, como em uma sutil campanha... e pegou! Outros moradores se reuniram e pressionaram o prefeito da época. Como argumento, a comemoração dos 60 anos de publicação da obra-prima de José de Alencar.

Naturalmente, com a chegada desses novos elegantes moradores, os pescadores desapareceriam, aos poucos, do cenário da ora bucólica Praia de Iracema.

Fato: historicamente, não apenas em Fortaleza, as comunidades pobres litorâneas, especialmente as pesqueiras, são ameaçadas por truculentas e covardes remoções, mas ainda assim resistem na luta por seus direitos territoriais, pela preservação de seus modos de vida e costumes tradicionais e contra o racismo ambiental. As ditas "elites", mancomunadas a governos não alinhados à justiça social, pressionam, em nome de "seu progresso", a essas comunidades. Oxalá que nós todos estejamos atentos a essas "tenebrosas transações" e tomemos o devido partido, quando for necessário, pois a vida de cada um nos importa!

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