
Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.
Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.
Não há quem negue a importância do nome, esta designação oficial de nossa existência dita cuja, seja ela a mais vã impossível, atribuída seja por quem for, a nos acompanhar pela vida à morte, falando de nós ou por nós como uma marca, às vezes como uma chaga.
Um nome bem escolhido nos coloca à frente, principalmente quando inicial "a", ou, ao contrário, nos diminui, quando feio, cacofônico, antiquado, com sentido dúbio ou estranho, fruto do engenho experimentalista dos pais.
Há tantos nomes bonitos, fortes, significantes — em alguns países asiáticos realizam-se cerimônias dirigidas por sábios que "adivinham" a função de mundo daquele ser e a coloca em seu nome — mas na hora da escolha de um nome, os pais ou os enxeridos de plantão, os "pitaqueiros", esquecem de atentar para a criaturinha que o levará às costas, às vezes, suportando o ridículo de uma predileção momentânea.
Meu nome é Raymundo Netto. Nasci numa noite de São Pedro. Fogos estrepitavam nos céus e minha mãe não duvidava que me nomearia "Pedro", assim como meu pai, José Pedro, que nascera à mesma data. Entretanto, papai dizia-lhe "Não. Ele terá o nome de meu pai: Raymundo!" Chegava à minha mãe o tom grave do nome. Insistiu na tese "José Pedro Júnior", afinal, era tão raro um filho, e logo o primeiro homem, nascer no mesmo dia de um pai... Mas este não vacilava: "Será Raymundo!".
Minha vó Alice, a mãe de meu pai, tentava: "Pedro Raymundo?", porém, entendia a minha mãe: "Deus me livre, me parece nome de sanfoneiro...". Com a determinação insistente de meu pai, ela, desconsolada, pensou: "Pelo menos será Raymundo Netto, e poderei chamá-lo por Netto".
Certo assim ficou e nos ecos mais longevos de minha vida, nem lembrava por um dia daquele Raymundo que parecia não ser eu. Cresci sem precisar dele, não tendo por ele nenhuma afinidade, sem o encontrar, apenas oficialmente, quase como um segredo de família ou uma doença autoimune.
Até as professorinhas, nas reveladoras chamadas de classe, o preteriam. As garotas da velha ponte que ainda não caiu, quando não saciadas após o "Netto" apresentado, insistiam: "Netto de quê?". "Raymundo...", e elas prosseguiam: "Pois então, Netto..."
É, o pobre do Raymundo não emplacava mesmo. Um azarão, condenado a esconder-se sob uma máscara de ferro nas masmorras cartoriais. Não fosse encargo de capa de livro, há 20 anos, inda estaria por lá.
De assim, sempre na mesa larga de família, em volta do casal paterno, vez ou outra, numa espécie de efeméride infantil, tornava-se assunto: "Como vocês tiveram coragem de, olhando para aquele ser indefeso, careca e banguela, gritar-lhe à cara: Raymundo?". Era graça, mas mamãe baixava os olhos e denunciava: "Foi o seu pai...". Este calado, não fosse com ele. Estranhamente, aqui constato: nunca me chamou por toda a vida pelo primeiro nome. Nunca!
Há anos, numa dessas mesas domingueiras, recorri como sempre, em momento de silêncio, ao assunto que até me parecia engraçado. Mas, pela primeira vez, meu pai levantou-se, ainda calado, dirigiu-se à porta da cozinha e, de lá, voltou-se de banda e afirmou: "Se você quiser mudar o seu nome, pode mudar, mas eu escolhi para você o melhor de todos os nomes: o do meu pai!"
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