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No Canto da Sereia
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Raymundo Netto é jornalista, escritor, pesquisador e produtor cultural, autor de obras premiadas, em diversos gêneros ficcionais ou não. É gerente editorial e gestor de projetos da Fundação Demócrito Rocha.

No Canto da Sereia

Tipo Crônica

"Cavalo-Marinho, mãe. Ele pegou um cavalo-marinho", apontava a menina para o irmão Zenor, que chegara da praia, naquele momento, esbaforido e delirante, agarrado suspeitamente a uma garrafa velha cheia d'água do mar.

Correu ao seu quarto ainda ouvindo a irmã resmungar, após desatenção da mãe: "Deixa seu irmão, menina! O bichinho..."

No quarto, Zenor botaria a garrafa em cima da cômoda, abriria a janela e passaria o resto da manhã apreciando o seu achado: uma sereia. Ainda pequena, uns 10 cm. A criatura estava naturalmente incomodada, debatia-se contra o plástico e, por vezes, parecia sufocar. "Muita areia...", pensou Zenor, que logo daria um jeito de pedir ao pai para comprar um aquário de verdade.

Anos se passaram e muitos aquários quebraram enquanto a sereia crescia, sempre aos olhos atentos e obsessivos de Zenor. Os seus pais achavam ótimo que o rapazinho tivesse encontrado um hobby, pois não saía de casa, portanto não tinha amigos, não falava com ninguém, era absolutamente alheio a tudo e a todos, menos à sua sereia.

Enquanto tratava seu aquário, como em um pacto de silêncio eterno entre ambos, passava horas a observar fascinado, quase babando, a sua presa. Os compridos e encrespados cabelos esverdeados, como algas, oscilando lentamente ao movimento do corpo muito alvo, pele aparentemente de bebê, embora áspera. Os seios salientes e sem aréolas, o majestoso pescoço, a ausência de lábios, pequenas brânquias atrás das orelhas, a cauda longa de escamas denteadas e brilhantes. A irmã, quando criança, gostava de ajudá-lo nessa tarefa - tinha afeição pela criatura. Porém, adolescente e feminista, tornou-se contrária ao absurdo e inútil cativeiro. O pai, interessado apenas nas coisas do mundo, pensava em como aquilo um dia poderia contribuir nas finanças domésticas. A mãe apenas a julgava pálida e magra demais.

Vez ou outra algum dos vizinhos adentrava, por curiosidade, o quarto. Também fotógrafos de revistas científicas e da imprensa local buscavam frestas de janelas para captar imagens da curiosa fêmea marinha. Todos eram violentamente enxotados pelo rapaz grandalhão, obeso e de fala pouco compreensível que se tornara o Zenor.

Tinha ele outro segredo. À noite, nunca conseguia dormir. Ao travesseiro, percebia os olhos dela muito abertos - naturalmente, não tinha pálpebras. Aquele olhar fixo em sua direção trazia o mesmo ar acusador e odioso de todos os dias. Estaria acordada? Estaria dormindo? Não sabia. Contudo, a brilhância do olhar amarelado, no negrume do quarto, parecia a de um farol. Pela manhã, amanhecia em ruínas à mesa do café, preocupando os pais pela sua saúde já debilitada.

Quando adulto, passou a morar só com a mãe - o pai falecera e a irmã comprou um apartamento.

Nesse tempo, guardava sua sereia no quintal, numa caixa d'água.

Era meio-dia. Sua irmã veio visitá-lo e almoçar com ele, a pedido da mãe em viagem. Ele já estava à mesa, quando ela dirigiu-se ao quintal para dar um "oi" à sereia. Não a encontrou: a caixa d'água vazia, encostada ao muro. Voltou à cozinha e perguntou ao irmão por ela, o que acontecera com ela. Esfregando a manga do suéter na boca oleosa e garfando o prato, ele apenas respondeu: "Tem gosto de salmão... Adoro salmão."

E desde esse dia, Zenor dorme um sono formidável, sonhando sempre com outras sereias.

Foto do Raymundo Netto

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