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Ele perdeu a floresta, eu ainda tenho o mar
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Regina Ribeiro é jornalista e leitora voraz de notícias e de livros. Já foi editora de Economia e de Cultura do O POVO. Atualmente é editora da Edições Demócrito Rocha

Ele perdeu a floresta, eu ainda tenho o mar

Quando coloco meus pés nus na areia da praia na orla de Fortaleza, quando vejo o sol nascendo ou se pondo à beira mar, é como se Fortaleza inteira coubesse naqueles minutos de beleza calma, aquecida e ventilada.
FORTALEZA, CE, BRASIL, 12-04.2022: Dia ensolarado após 40 dias de chuva, Praia de Iracema (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves FORTALEZA, CE, BRASIL, 12-04.2022: Dia ensolarado após 40 dias de chuva, Praia de Iracema

"Visitei minha cidade hoje". Pra mim não foi surpresa. Antes era um mapa físico que ele estendia sobre a mesa para mostrar aos filhos o lugar onde havia nascido. Diante dele, o que eu considerava um trançado ilegível de linhas coloridas se transformava em rios, floresta, ruas de casas de palafita, estradas como a que o levava até o sítio onde a avó - dona Vitória - morava, em terras a perder de vista plantadas com toda sorte de frutas e espaço quase infinito para brincar. Quando ele fechava o mapa cuidadosamente, era como se o mundo em volta tivesse parado por alguns momentos. Depois, ele descobriu o Google Maps. E a tristeza. Embora tenha ido pessoalmente conferir que as terras da vó Vitória são hoje um bairro chique com o principal shopping da cidade, cada vez que ele olha a cidade dele, é um choque.

Estava visivelmente triste. Para tentar animá-lo perguntei pela floresta. "Que floresta, que nada. Não tem mais nada de floresta. Só edifícios". Mas a cidade muda. Não vê Fortaleza? Muitas vezes nem reconheço mais nada. "Você está aqui. Eu não estou vendo Rio Branco mudar". As histórias mais bonitas da infância dele têm a floresta como cenário.

Numa delas, ele tinha sete ou oito anos e estava na companhia do pai passeando pelas trilhas tão densas da floresta que nem parecia dia claro, quando avistou nesgas de sol brincando com pedras coloridas, às margens da trilha, no meio de arbustos. Enquanto o pai dizia "não toque em nada", as mãos do menino foram mais rápidas, atraídas pela beleza das cores azul marinho, vários tons de verde, amarelo e laranja. "Aquilo era uma riqueza. Meu pai talvez soubesse, mas respeitava." É admirável o amor que ele tem pela cidade dele. A história, os detalhes, a infância nos lugares que resistem apenas na memória. Passados tantos anos juntos, talvez consiga entender melhor seu olhar de estrangeiro e minha própria relação com Fortaleza.

Até porque Fortaleza, às vezes, me irrita com essa quantidade de farmácias que me faz desconfiar que somos mais doentes do que em outras cidades. De contar nos dedos as livrarias abertas, de não ter um cinema de rua para ir, do preconceito velado que sofremos em alguns lugares, da opulência ostentada sem limites, da pobreza extrema que se avoluma nos sinais, das calçadas invadidas, das zonas onde a morte escolhe os jovens.

Por outro lado, em Fortaleza o Sol pinta a cidade de um amarelo tão singular que parece ser o mais bonito do mundo. O vento, mesmo sofrendo para driblar os obstáculos que ano a ano quer torná-lo exclusivo para poucos, ainda consegue vencer e espalhar um ar ameno pela cidade. Gosto dos poetas da cidade, da música, do teatro, do cinema, da literatura, da escultura, da pintura feitos por pessoas marcadas por Fortaleza. E são tantas.

E como ele diz: "Eu perdi minha floresta, mas você ainda tem o mar". E o mar. Quando coloco meus pés nus na areia da praia na orla de Fortaleza, quando vejo o sol nascendo ou se pondo à beira mar, é como se Fortaleza inteira coubesse naqueles minutos de beleza calma, aquecida e ventilada. Depois, volto à rotina numa cidade amarelo-alaranjada, veloz, indiferente e desigual. 

 

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