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O Nordeste não é pobre, é lúcido
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Regina Ribeiro é jornalista e leitora voraz de notícias e de livros. Já foi editora de Economia e de Cultura do O POVO. Atualmente é editora da Edições Demócrito Rocha

O Nordeste não é pobre, é lúcido

O Brasil deve ao Nordeste boa parte do pensamento intelectual, da sua expressão nas artes e nos ícones culturais, agora deve também a lucidez das urnas
Tipo Análise
Rachel de Queiroz (Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação Rachel de Queiroz

Quem pensa que o Nordeste chama a atenção do Brasil pela forma como vota, se engana. Rachel de Queiroz, numa crônica publicada n´O POVO em 25 de outubro de 1950, aborda a votação para presidente em alguns estados da região, principalmente Ceará e Piauí. Em “O canto do cabeça-chata”, a escritora se revolta com o resultado das eleições passados 21 dias de contagem dos votos e que apontam para uma vitória expressiva de Getúlio Vargas, de volta ao poder pelo voto popular.

“Pode quem quiser ter mágoa, podem falar que é orgulho – mas falar a verdade é preciso, verdade nunca foi agravo, orgulho mostra quem tem”, começa Rachel. Em 1950, a região Nordeste era praticamente nova do ponto de vista da divisão administrativa do País, e uma das principais vozes a se levantar para dizer que nem tudo que ficava na parte de cima do mapa do Brasil era norte foi o pernambucano Gilberto Freyre.

Em 1934, ele realizou em Recife o Congresso Afrobrasileiro e chamou intelectuais para discutir o Nordeste que, segundo ele, tinha vida econômica e cultural próprias, com um meio ambiente particular que não poderia se confundir com a Amazônia. Para arrematar, há tempos engendrava seu trabalho em torno da herança europeia e africana na formação do povo brasileiro.

Claro que lidos hoje, os escritos de Freyre merecem releituras por ter sido construídos com uma visão europeia de desenvolvimento. Também há muito se critica a imaginação do sociólogo ao criar um mundo dócil entre casa grande e senzala.

Mas voltando à Rachel. Ela tinha horror de Getúlio Vargas. Durante todo o ano de 1950, teceu as maiores críticas ao candidato a quem chamava de ditador a torto e a direito e, para ela, seu governo de 15 anos não passava de uma ditadura. Afinal de contas fazia pouquíssimo tempo que escritores e intelectuais eram presos e perseguidos, além da máquina de censura, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), que mantinha tudo sob controle.

Lembrei-me da Rachel diante dos resultados da votação do último domingo, 2. Olhando o mapa do Brasil, o Nordeste estabeleceu uma barreira contra Bolsonaro no primeiro turno. Enquanto muita gente diz que o Nordeste votou no ex-presidente Lula só porque é pobre, eu digo que é porque é lúcido. Basta olha para tudo que o Nordeste entrega ao Brasil do ponto de vista intelectual. O pensamento brasileiro, a literatura, o cinema, as artes de um modo em geral devem ao Nordeste sua expressão e símbolos culturais. Ceará, Piauí, Pernambuco votaram contra Getúlio. Bahia se dividiu. Os demais, Rachel não disse ou os votos não estavam contados.

Não estou dizendo que quem vota no Bolsonaro individualmente não é lúcido, estou dizendo que há um modelo de gestão e de condução do país do atual presidente que claramente não é possível considerar adequado, embora reconheça que milhões de pessoas o aprovam e votam nele. E esta é a beleza do jogo quando estamos numa democracia, embora atacada pelo atual presidente e por muitos dos seus seguidores. Impossível dizer o que vai acontecer no segundo turno, no entanto, torço para que o Nordeste se continue conseguindo ver um pouco mais longe e definindo suas próprias prioridades e interesses, como historicamente o faz.

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