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Afinal, o que é morrer dignamente no Brasil?
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Regina Ribeiro é jornalista e leitora voraz de notícias e de livros. Já foi editora de Economia e de Cultura do O POVO. Atualmente é editora da Edições Demócrito Rocha

Afinal, o que é morrer dignamente no Brasil?

Ficar velho e morrer não é tarefa fácil, estou percebendo, em quase lugar algum. No Brasil, em particular
Tipo Análise
Envelhecimento da população requer mudanças nas políticas publicas voltadas para os idosos  (Foto: Thomas Andreas Parpoulas)
Foto: Thomas Andreas Parpoulas Envelhecimento da população requer mudanças nas políticas publicas voltadas para os idosos

 

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Tenho acompanhado, aqui acolá as discussões sobre “morrer” que correm, atualmente, na França. Curiosa e/ou ironicamente – isso resvala nos textos que leio sobre o assunto – o presidente preocupado que os franceses morram “bem e dignamente” é o mesmo que está submetido a uma saraivada de protestos desde que decidiu elevar a idade mínima da aposentadoria no país. Velhos e jovens se uniram contra Emmanuel Macron que, irredutível, aceita conversar, mas jamais recuar na proposta.

Macron chamou para si a discussão sobre a morte na França por reconhecer o óbvio. O envelhecimento da população é real no mundo, na Europa em particular, e não é de hoje. No entanto, ficar velho e morrer não é tarefa fácil, estou percebendo, em quase lugar algum. No Brasil, em particular. A França pôs em discussão desde os cuidados a pacientes terminais, assim como a morte assistida, além do respeito à individualidade da pessoa idosa quando esta é capaz de decidir e discernir sobre como quer passar seus últimos dias, a eutanásia e as decisões que envolvem familiares de pessoas idosas sem capacidade de gerir suas vidas.

No Brasil, a gente sequer discute nada disso de forma ampla, embora o país também esteja envelhecendo rapidamente. Ter acompanhado uma tia de 97 anos nos últimos tempos de sua vida me fizeram perceber a complexidade da velhice e suas necessidades reais. Quando minha tia se internou em janeiro para fazer uma cirurgia, notava algo que me deixou estarrecida: Chamavam minha tia de “princesa”, falavam com ela como se fosse uma criança de três anos de idade. Intervi várias vezes dizendo o nome dela para os profissionais vários que entravam naquele quarto, todos “abismados” com uma pessoa de 97 anos lúcida, que sabia o que estava acontecendo e reconhecia todas as pessoas que estavam em volta dela, inclusive pelo nome.

A lucidez foi a marca da minha tia até a véspera da sua partida. Almoçamos com ela no domingo de Páscoa. Molinha, não quis comer. Na segunda, passou mal, a médica que a atendeu em casa sugeriu interná-la. Insuficiência pulmonar e cardíaca. No hospital, o cardiologista informou que ela seria entubada. Eu disse não. Ele falou que era “o médico” e que esse era o protocolo. Minhas irmãs temeram que outras pessoas da família não entendessem a decisão. Perguntei ao médico quais os benefícios do procedimento. Ele explicou que “praticamente nenhum”, porque aos 97 anos, no caso dela, não havia mais nenhum recurso físico. Sustentei o não. Ampliaram a carga de oxigênio, ministraram antibióticos, medicação para dor e foi sedada. O hospital então, me chamou para uma reunião com a médica de cuidados paliativos. Ela despediu-se uma hora antes da reunião.

Minha Tia Cema morreu cercada de cuidados. Minhas irmãs e eu empreendemos a missão de dar à nossa tia – solteira, sem filhos –, dignidade, conforto e atenção de verdade até o fim. A tarefa é árdua, solitária e, muitas vezes, incompreensível. Respeitar o limite entre o que ela queria e o que precisava ser feito era o mais extenuante. E talvez por isso mesmo, muita gente trate pessoas idosas como coisa. Era o fim, sabíamos, seria o mais digno possível. Mas o que é mesmo morrer dignamente no Brasil?

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