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Deixem os livros em paz. Racismo tem outros professores
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Regina Ribeiro é jornalista e leitora voraz de notícias e de livros. Já foi editora de Economia e de Cultura do O POVO. Atualmente é editora da Edições Demócrito Rocha

Deixem os livros em paz. Racismo tem outros professores

Ouso garantir que o racismo não é uma criação literária. Ao contrário, o literário nos expõe ao racismo para reflexão, crítica, ponderação.
Tipo Análise
Por uma política de incentivo à leitura (Foto: @FREEPIK)
Foto: @FREEPIK Por uma política de incentivo à leitura

 

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Já faz um tempo que os livros estão na mira de algumas posturas que, no fim das contas, promovem um atentado contra a literatura. Para começar a conversa, a literatura se produz num determinado tempo e espaço, e embora muitos livros - os clássicos - até antecipem uma realidade inexistente, como, por exemplo, “O homem da areia”, onde Hoffmann cria, em 1815, uma personagem autômata muito semelhante ao que seria hoje uma inteligência artificial, os olhos do escritor eram os de um homem do século 19. Ao ler o texto de mais de 200 anos, só consigo fazê-lo com uma cabeça do século XXI.

É neste ponto onde mora uma das maiores riquezas do texto literário, por ser capaz de nos fazer enxergar um mundo não vivido por nós, incluindo a concepção do autor sobre a sociedade da sua época. A literatura também nos ensina a ler criticamente e a discordar dos pontos de vista dos personagens e do próprio escritor e aqui está outra lição da leitura literária.

No jogo de mergulhar no texto e trazê-lo para o confronto com o real, se estabelece, com certeza, uma habilidade de interpretação do mundo e um alargamento das visões que temos sobre as coisas.

O escritor Umberto Eco sempre se referia a esse aspecto como acréscimos de tempo à nossa tão ligeira experiência de vida. Ele dizia que a cada livro que lia eram-lhe acrescentados alguns anos. Numa de suas últimas entrevistas, estimou que tinha “perto de 600 anos”. A brincadeira de Eco é, na verdade, uma metáfora da expansão da própria vida, proporcionada pela literatura.

Então, é com um senso de tristeza que vejo esse movimento de modificar os livros para tirar deles tudo aquilo que incomoda às falsas sensibilidades contemporâneas. Nas redes sociais, tudo deve ser permitido, inclusive ser racista, machista, nazista, mas os livros do Monteiro Lobato devem retirar as representações de uma época e os posicionamentos de um autor, transformando a empregada "preta" tia Anastácia na "melhor amiga" da Dona Benta.

O autor Monteiro Lobato deixa de existir e o problema da Anastácia não se resolve. Os incomodados com o racismo de Lobato são capazes até de concordar que a "amiga" da patroa trabalhe sem receber salário nem férias nem descanso. Imagine reescrever William Faulkner extraindo da sua obra as complexas e racistas relações entre os brancos e os negros norte-americanos. Calcule intervir em Dostoiévski, acusando-o de fazer apologia à violência por "Crime e Castigo".

Lembro-me do projeto “Conta pra mim”, criado pelo ex-secretário de Alfabetização do MEC, Carlos Nadalim, que idealizou um mundo sem conflito e mandou subtrair qualquer arranca-rabo dos livros infantis. A avó da Chapeuzinho Vermelho não foi mais engolida pelo Lobo Mau, e este jamais fora abatido pelo caçador. O Flautista de Hamelin não surrupiou as crianças; João e Maria nunca foram abandonados pelos pais na floresta.

Seria ótimo que as pessoas deixassem os livros em paz. Lidos durante a infância e a adolescência, principalmente, os livros podem nos ensinar muito sobre o humano com efeitos permanentes pela vida inteira. Ouso garantir que o racismo não é uma criação literária. Ao contrário, o literário nos expõe ao racismo para reflexão, crítica, ponderação.

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