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Cenas de uma Fortaleza tomada
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Sou jornalista de formação. Tenho o privilégio de ter uma vida marcada pela leitura e pela escrita. Foi a única coisa que eu fiz na vida até o momento. Claro, além de criar meus três filhos. Trabalhei como repórter, editora de algumas áreas do O POVO, editei livros de literatura, fiz um mestrado em Literatura na Universidade Federal do Ceará (UFC). Sigo aprendendo sempre. É o que importa pra mim

Cenas de uma Fortaleza tomada

Esses fortalezenses são bem mais do que refugiados urbanos. Eles são vítimas de uma violência que os lança numa condição traumática na qual imperam o silêncio, o medo de perder a vida, o esfacelamento familiar, a descrença nos agentes públicos

Enquanto lia, segunda-feira, 6, a reportagem assinada pelo jornalista Lucas Barbosa sobre as expulsões de moradores por facções em vários bairros de Fortaleza nos últimos 10 anos, lembrei-me do conto de Júlio Cortázar, "Casa Tomada". Na ficção, um casal de irmãos divide a morada tradicional da família desde os bisavós. Uma ampla casa com duas áreas internas separadas por uma grande porta de carvalho.

Um dia, sem que esperassem, ouviram um forte barulho na parte de trás da casa. Para se protegerem, cerraram a porta de carvalho e ficaram confinados às acomodações da frente da residência que continham cozinha, banheiro e um living. Dias depois, tomaram, no meio da noite, o corredor que dava para a cozinha, sufocando o casal numa pequena ala. Sem que pudessem reaver qualquer bem, foram embora com a roupa do corpo.

De certo, a realidade é sempre mais dramática do que qualquer ficção e foi impossível ler a reportagem que mostra o cenário de Fortaleza dez anos depois da primeira matéria, publicada no O POVO, sobre criminosos expulsando moradores de casa na comunidade Cidade de Deus, sem ser tocada por uma tristeza que se aprofundou após a leitura. Onde estávamos enquanto as siglas que atemorizam esta cidade, o Ceará inteiro e até o País foram tomando conta de tudo?

Para além da pesquisa feita mostrando a expansão da prática das expulsões pelos criminosos, a reportagem revela o fortalecimento das agremiações do terror, a fusão e a multiplicação do crime organizado. Nas entrelinhas, porém, é possível ver, quase de forma palpável, a dor e o desnorteio que pairam sobre os moradores alcançados pela potência dessas organizações perversas e cruéis.

Durante a leitura, me deparo com a pior consequência dessa tragédia urbana, que é o silêncio imposto pelo medo que tais ações têm o poder de proporcionar. Os baixíssimos números de notificação do crime de esbulho possessório contrastam, segundo o texto, com o crescimento observado, à luz do dia, daqueles que são praticamente arrastados de suas casas.

Esses fortalezenses são bem mais do que refugiados urbanos. Eles são vítimas de uma violência que os lança numa condição traumática na qual imperam o silêncio, o medo de perder a vida, o esfacelamento familiar, a descrença nos agentes públicos, ampliando ainda mais o terreno dos criminosos que atuam de forma tão desenvolta nesta Fortaleza tomada.

Percebi ainda nesta reportagem o desafio das instituições que criam redes de apoio para atender as vítimas desse tipo de violência que, rapidamente, está corroendo todos os nossos espaços. Porque esta é que parece ser a questão central da abordagem criminosa, ampliar espaços para os domínios do crime e subjugar com silêncio e pavor os que aceitam, sob ameaça, compartilhar territórios com os criminosos. n

 

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