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Vida ou morte
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Reinaldo Azevedo é jornalista político, autor do livro

Vida ou morte

Temos de recuperar nosso direito à sorte e à roda da Fortuna rosianas
Tipo Análise
 (Foto: BLOG DO ELIOMAR)
Foto: BLOG DO ELIOMAR

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"Viver é muito perigoso: sempre acaba em morte". É uma das falas-pensamento de Riobaldo, em "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Como citação esparsa, costuma-se omitir a segunda oração porque a primeira, isolada, empresta à reflexão um acento entre existencialista e metafísico.

Falaria à humanidade, não ao indivíduo. Não deixa de ser uma daquelas boas traições ao texto original. O fatalismo cru na finitude – "acaba" – cede a "viver", a forma nominal do verbo, que não tem tempo.
A vida como um bem não fungível, que não se gasta e existe em outro plano além deste – em que, morrendo, nos esgotamos –, está na origem de todas as religiões.

Pessoas morrem ao atravessar, distraídas, uma rua. Ou engasgam com um pedaço de carne. Ou podem ser fulminadas por um último superlativo besta – "Lindíssimo!" –, a exemplo de José Dias, o agregado da casa de Bentinho, em "Dom Casmurro".

E pronto. Entram no reino do nunca mais. A vida sempre acaba em morte. Jair Bolsonaro tentaria emporcalhar meu parágrafo, discursando sobre uma montanha de cadáveres: "Todo mundo morre um dia". "Tem que deixar de ser um país de maricas".

Bem mais moço, vislumbrei a vereda de um Estado que nos deixasse viver e morrer em paz, desde que cumprido o misto de determinação e desiderato das democracias, que têm de garantir a igualdade perante a lei, de assegurar as liberdades individuais e de buscar corrigir, por meio da educação e de outras políticas de bem-estar, o que a origem de cada um desconsertou.

Esperança vã. Quantos são os que, em algum momento, já se disseram liberais e estão agora a serviço de um governo que cultua a morte em vida?

Com frequência estúpida, não se morre no Brasil e em outros países marcados por iguais violência e miséria porque, afinal, a morte faz parte da delícia e da dor de existir, como sugere a primeira oração da citação rosiana. A carnificina nada tem a ver com um "punhal de amor traído", da música de Belchior, ou com uma distração fatal. Não.

É o Estado delinquente que está na origem de boa parte dos mais de 40 mil homicídios dolosos por ano e das quase 670 mil mortes por Covid-19 desde o início da pandemia. E dos soterramentos em razão das chuvas. E do brejo que sufoca as almas quando se rompem as barragens.

E dos sem-teto que se amontoam nos baixos de viadutos e sob as marquises, "sem ar, sem luz, sem razão", lembrando às grandes cidades brasileiras que, nesses navios negreiros "aggiornados", quase sempre se é livre para dormir debaixo das pontes. Quase sempre.

Esse Estado historicamente delinquente tem de ser reformado e contido por governos comprometidos com a democracia e com os fundamentos da civilização. Em 2018, e talvez se possa voltar a 2013 em busca das origens (mas isso fica para outros carnavais), abriu-se no país a trilha para a terra dos mortos com a eleição de Jair Bolsonaro, o presidente convicto de que "a liberdade é mais importante do que a vida".

Ao discursar a seguidores em Orlando, defendeu uma população armada e refletiu, com sabedoria peculiar: "Somos pessoas normais. Podemos até viver sem oxigênio, mas não sem liberdade".

Nesse momento, fez uma pausa muito sutil, e seu rosto exibia um misto de esgar e sorriso discreto, como quem lembrasse de alguma coisa. O vídeo circula por aí. Vieram-me à mente, e talvez à dele próprio, os sufocados do Amazonas, dos quais fez pilhéria em uma de suas "lives", simulando a sua agonia. Buscava o riso e o escárnio. Antes, a canalha silenciava sobre os corpos. Hoje, tripudia.

Já escrevi neste espaço que, na eleição de outubro (se houver), a neutralidade entre a corda e o pescoço será necessariamente corda e que a polarização, esse termo quase sempre mal-empregado, se dá entre democracia e não democracia. Atualizo. Haverá uma disputa entre a vida e a morte. A primeira comporta um leque infinito de divergências. A outra é um "estado de sítio permanente", para lembrar de novo Machado de Assis.

Que a memória da luta do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista Dom Philipps colabore para que a vida vença o reino da morte no Brasil. Para que voltemos a ter direito à sorte e à roda da Fortuna rosianas.

Foto do Reinaldo Azevedo

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