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Pandemia reconfigura mercado da droga no mundo
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Pandemia reconfigura mercado da droga no mundo

Os danos sociais e econômicos provocados pela pandemia tanto geram aumento na demanda por drogas quanto possuem potencial para fortalecer os mercados ilícitos de entorpecentes por meio do incremento das oportunidades de expansão
Tipo Notícia

A apreensão de 1,3 toneladas de cocaína em um jatinho, no Aeroporto de Fortaleza, não foi um episódio isolado, mas sim o reflexo de mudanças nas dinâmicas do tráfico de drogas em escala global. A aeronave, um jato Gulfstream IV que pertencera ao Governo da Turquia, partiu de Ribeirão Preto (SP) e, antes de rumar para seu destino final, Bruxelas, na Bélgica, fez uma parada técnica na capital cearense.


Fortaleza é parte importante da rota de passagem para a cocaína que vem da Colômbia e do Peru desde o início dos anos 2010. O uso de aviões particulares para transporte da droga, contudo, se acentuou durante a pandemia do Coronavírus, como revela o relatório World Drug Report 2021, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).


De acordo com o estudo, o tráfico se mostrou uma atividade bastante resiliente mesmo durante o período de medidas preventivas em relação à doença, como a restrição de circulação e o isolamento social. Após um baque inicial, o mercado de drogas se recuperou e mudou: as transações registraram uma rápida retomada após a ruptura inicial no início da pandemia, causando um boom que desencadeou ou acelerou determinadas dinâmicas de tráfico pré-existentes.


No que diz respeito à demanda, algumas tendências comuns parecem ter surgido em diferentes países: aumento no consumo de cannabis; uso não médico de drogas farmacêuticas, bem como redução no uso de drogas consumidas principalmente em atividades sociais ou contextos recreativos, como a cocaína ou as "drogas de festa", como MDMA.


Conforme a publicação, a produção da folha de coca não foi afetada, mas a cadeia de abastecimento de produtos relacionados à cocaína foi interrompida nas fases iniciais da pandemia, quando os compradores na Colômbia e no Peru perderam acesso às áreas de produção. O fluxo foi retomado tão logo as medidas de prevenção se atenuaram.


No que se refere ao transporte terrestre, o Brasil registrou aumento nas apreensões de drogas nas estradas motivado por vários fatores, como novas estratégias de repressão policial e a diminuição do tráfego rodoviário provocado pelo fechamento das divisas. Em relação ao tráfico por meio de vias aéreas, houve redução do número das “mulas", ou seja, de pessoas que levam drogas no próprio corpo, bem como a corrupção a membros de companhias aéreas. Estima-se que as viagens tenham sido reduzidas em 70% sem que esse fluxo tenha retornado ainda a níveis anteriores.

Diante desse cenário, os traficantes tiveram de se adaptar às novas condições impostas pelas medidas sanitárias. A apreensão do jatinho em Fortaleza e a queda de um helicóptero com 300 quilos de cocaína no Mato Grosso são dois exemplos dessa nova estratégia. Segundo o UNODC, as mudanças identificadas no período foram: embarques cada vez maiores de drogas ilícitas, aumento na frequência das rotas terrestres e fluviais, maior uso de aviões privados para fins de tráfico de drogas e um aumento no uso de métodos sem contato para entrega de medicamentos aos consumidores finais.

Na Europa, um importante mercado de destino para cocaína, não foi constada redução significativa nas apreensões de cocaína. A droga chega principalmente por via marítima. Com a perspectiva de diversificação das vias de suprimento, o UNODC alerta para uma nova expansão do mercado naquele continente. Apontado como um importante corredor para o escoamento da droga, o Brasil não teve interrupções relevantes no transporte da coca. As apreensões continuaram ocorrendo em grande escala e os preços se mantiveram estáveis. De acordo com a publicação, esses dados revelam que a cadeia de abastecimento se manteve imune a choques.

O cenário futuro desenhado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime é pouco otimista. Os danos sociais e econômicos provocados pela pandemia tanto geram aumento na demanda por drogas quanto possuem potencial para fortalecer os mercados ilícitos de entorpecentes por meio do incremento das oportunidades de expansão.

Estratégias adotadas como formas de burlar os órgãos de repressão visando a manutenção dos rendimentos devem permanecer mesmo com o controle dos efeitos da pandemia. Há alguns indícios de que o crime organizado passou a assumir o papel do Estado em áreas vulneráveis nos mercados de drogas ilegais. O aumento na participação de crianças nos circuitos criminais seria um desses indicadores. A crise aumentou o número de empresas com dificuldades financeiras, permitindo que elas caiam sob o controle de organizações criminosas especializadas ou tenham de recorrer à liquidez oferecida pelo dinheiro do Crime.

Como bem demonstra o relatório do UNODC, os traficantes tiveram de reordenar suas práticas ao longo da pandemia, diversificando suas estratégias de produção e circulação de entorpecentes. Sem alarde, o mercado de drogas se reconfigurou na velocidade própria das atividades ilícitas. Casos como o do jatinho turco devem se tornar mais comuns nos próximos meses. O cenário que se descortina é de maior acirramento das apreensões com sua contrapartida no incremento da violência, uma realidade já bastante conhecida e na qual as principais vítimas são as populações mais vulneráveis.

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