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O desafio de transformar números em sensação de segurança
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

O desafio de transformar números em sensação de segurança

A quem interessa saber do destino das pessoas "envolvidas" no submundo das drogas, cuja sentença de morte está previamente dada? Os buracos nas ruas nos interpelam muito mais

Em entrevista recente, o secretário da Segurança Pública e Defesa Social, Sandro Caron, apresentou um balanço positivo de sua gestão à frente da pasta a ponto de afirmar que o Ceará se tornará uma "grande referência em segurança pública". A declaração ocorre no exato momento em que o número de crimes violentos letais intencionais (CVLIs) registram queda na comparação com o mesmo período do ano passado.

O secretário destaca os investimentos feitos em tecnologia, o reforço na composição de PMs e a valorização da profissão como fatores que fizeram com que o setor se "encaixasse". "O sistema de segurança pública do Estado está bem encaixado. A gente está trabalhando integrado, cada órgão fazendo o seu papel. O sistema está funcionando bem. Porque, também, não adianta uma força fazer bem o seu papel e as outras não. Segurança Pública é sistema", argumenta.

No que diz respeito ao crime organizado, Sandro Caron alega que 95% dos assassinatos se devem ao narcotráfico, mas que, ainda assim, o Estado mantém o controle sobre os territórios, não havendo nenhuma área em que a PM não entre com "uma viatura e três policiais". "Não tem semana que a gente não prenda alguém por conta de ameaças a moradores. O controle é do Estado e a presença em áreas que há esse tipo de coisa há uma presença maior do Estado, até que se faça a prisão desses criminosos", assegurou.

Cabe ao gestor o papel de ressaltar seus feitos; é do jogo, como cabe a quem pesquisa e analisa as políticas públicas de segurança levantar questionamentos. Comecemos pelo fim, então. Na noite de 27 de março, após uma desavença com o tráfico local motivada por uma queixa de moradores, o massoterapeuta Antônio Carlos da Silva, conhecido profissionalmente como Tony Padaleck, foi levado de seu apartamento, no bairro Pedras, em Fortaleza. Dias depois, uma imagem de um tronco decepado atribuído a ele passou a circular em grupos de Whatsapp.

Conversei com pessoas que o conheciam e elas foram unânimes em dizer que se trata do corpo do massoterapeuta por causa de uma tatuagem no peito. No entanto, onde está o cadáver? Sem prova material, não é possível afirmar formalmente que houve homicídio. Noticiei o caso em meu perfil do Twitter. Na TV e na Internet, o caso de Tony Padaleck foi repercutido, mas tratado como um rapto. O nome dele, contudo, não está na lista dos desaparecidos da Polícia Civil.

Como a família da vítima mora longe, não houve mobilização em torno da busca pelo corpo muito menos clamor social. Passado mais de um mês, a situação permanece nebulosa: todas as pessoas com quem travei contato se mostram reticentes em falar do assunto. Quem se atreve perguntar por ele no Residencial Alameda das Palmeiras? A impressão que passa é que o paradeiro do massoterapeuta não interessa a ninguém. Tony Padaleck tornou-se uma entidade fantasmagórica.

Essa indiferença, no entanto, não se reverte em sensação de segurança, mas num mecanismo que busca varrer questões sociais incômodas para debaixo do tapete. Em paralelo às ações de repressão ao tráfico de drogas, com suas operações, delações e ações de inteligência, há uma certa fadiga da opinião pública quando se trata do assunto "facções".

O filósofo Paul Ricouer tematiza essa operação de cumplicidade secreta que consiste em um esquecimento ativo motivado "por uma obscura vontade de não se informar", ou seja, por um "querer-não-saber". Trata-se de um recurso usado há muito tempo em se tratando dos assassinatos juvenis, pauta gravíssima que nunca foi encarada pelo poder público e pela sociedade com a seriedade necessária, como ressaltei em minha dissertação de mestrado.

O assunto da vez a ser esquecido é a onipresença do crime organizado no Estado. Como já escrevi anteriormente, as organizações criminosas tornaram-se parte da paisagem social da "Fortaleza branca", que vive sob o privilégio de não contar com a opressão dos grupos armados em sua porta. A quem interessa saber do destino das pessoas "envolvidas" no submundo das drogas, cuja sentença de morte está previamente dada? Os buracos nas ruas nos interpelam muito mais.

A referência almejada pelo Ceará em segurança pública passa por lidar com o exército de reserva do tráfico que se acumula ano a ano pela falta de políticas efetivas de prevenção. A constatação de que 95% dos homicídios se devem ao tráfico de entorpecentes deve vir aliada a ações sistemáticas que evitem a entrada da população jovem no mundo do crime e que permitam a essas pessoas sair de um modo mais seguro dessa condição. Sem essa contrapartida, os órgãos de segurança permanecerão na incômoda situação de apenas "enxugar gelo".

 

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