Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Os crimes reais estão na moda. Séries e podcasts retratam episódios que marcaram época por envolverem pessoas famosas ou abordar situações-limite, desafiando a imaginação e os graus do tolerável entre o público. No entanto, não se trata de uma novidade inaudita esse gosto pelo que há de mais mórbido e cruel na vida humana.
Desde a época dos trovadores, a trajetória das pessoas enforcadas era retratada em verso e prosa para deleite da corte e dos plebeus. Os cordéis, por sua vez, foram um veículo privilegiado para a consolidação do imaginário dos cangaceiros entre os sertanejos. Foge do escopo da coluna uma discussão mais tematizada sobre o que há de serviço de interesse público nessas novas produções e o que é mero sensacionalismo embalado numa roupagem mais moderna.
Não sou o público desse tipo de produto. Me interessam justamente as pessoas que, pelo grau de recorrência com que são vítimas, não constituem um caso extraordinário de violência ou crime. Fazendo um paralelo com os locais ditos "instagramáveis", que rendem boas fotos nas redes sociais, há milhares de histórias de vida que não são "podcastizáveis", ou seja, suas existências e mortes são tão comuns e previsíveis que o apelo dramático é inexistente.
Trata-se de corpos que engrossam as estatísticas cotidianamente, mas que damos pouca ou nenhuma atenção. E aqui vale um spoiler: estamos cada vez nos importando menos com o destino de tais pessoas, haja vista a distância (geográfica, social, cultural) que nos separa delas. A classe média de Fortaleza, por exemplo, há muito tempo deixou de se apavorar. Destaco, a seguir, três segmentos da sociedade que costumam ser vítimas da violência letal, suas motivações possuem um entrelaçamento, mas cujas mortes não ganham a repercussão devida.
No ano passado, 272 mulheres foram assassinadas no Estado. Nos 23 primeiros dias de janeiro de 2023, 21 mulheres foram assassinadas no Ceará. Esse número equivale a todo o mês de janeiro do ano passado. A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) classifica em suas ocorrências diárias alguns desses homicídios como feminicídios. Na comparação entre esses dois períodos, janeiro/22 e janeiro/23, os casos saltaram de dois para seis na contagem oficial. Vale ressaltar que, por sua complexidade, os feminicídios existentes superam e muito os dados das estatísticas oficiais.
Em Iguatu, na semana passada, um homem matou a ex-esposa e uma mulher com quem mantinha um relacionamento amoroso. O crime já foi registrado como um duplo feminicídio no portal da SSPDS, mas certamente há casos semelhantes entre as mulheres assassinadas este ano que não foram classificados sob essa tipificação penal. Cabe à investigação levantar as circunstâncias exatas em que as vítimas foram mortas. Traçar um diagnóstico preciso do problema é começar a resolvê-lo.
Dentro dessa perspectiva, de crimes motivados por ódio, um levantamento recente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) revelou que, em 2022, o Ceará tornou-se o segundo estado brasileiro em que mais se mataram pessoas trans, com 11 assassinatos. Em dados absolutos, os números se mantiveram na comparação com 2021.
Criada pela Lei Estadual 18.250, de 6 de dezembro de 2022, a Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou de Orientação Sexual (Decrim) precisa sair do papel. Compreender as causas e as motivações para esse ódio precisa estar na pauta não só dos órgãos governamentais como da própria sociedade. De onde vem tanta intolerância? Como ela se estrutura e se ramifica?
Por fim, temos os homicídios juvenis, uma chaga social sem solução à vista. Conforme dados do Painel de Monitoramento de Homicídios do Comitê Cada Vida Importa, da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (ALCE), 412 adolescentes entre 10 e 19 anos foram assassinados no Estado, em 2022. Desse total, 41 eram adolescentes do sexo feminino, ou seja, cerca de 10%. Trata-se de um percentual bastante elevado sob qualquer perspectiva. São mortes causadas por conflito entre facções e pela misoginia. Desde muito novas, a dura lição aprendida é que a vida da mulher vale muito pouco em um mundo ainda tão machista.
Passou da hora de o Governo do Estado compreender esses três segmentos como um público prioritário das políticas de segurança pública em sua forma mais ampla: não se restringindo apenas à repressão qualificada, mas abarcando ainda políticas de prevenção e formação escolar. Misoginia e transfobia se aprendem em casa e na rua. E são exercidas por adolescentes que matam e morrem numa guerra insana. Cabe ao poder público prover uma formação que vise à promoção dos direitos humanos desde cedo. Construir uma cultura de paz e de tolerância: este é o nosso desafio para que um dia a violência letal esteja presente apenas em séries e podcasts de ficção em vez de uma realidade que se impõe a milhares de famílias.
P.S. O Colunista tira férias em fevereiro. Retomamos as atividades em março.
Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.