Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
As imagens da violência nos desafiam: para além da criminalidade urbana, velha conhecida, cenas de guerra entre Israel e o Hamas são expostas diariamente tanto nos meios de comunicação quando nas redes sociais. Ao mesmo tempo, recebemos pelos celulares vídeos de pessoas torturadas e decepadas a mando de facções. Crimes distintos, brutalidade semelhante.
Como lidar diante dessa enxurrada de estímulos visuais e sonoros sem que percamos a empatia diante da dor alheia? Como fazer o relato de tais situações sem desumanizar e sem impor uma nova condição de violência a quem sofre?
Do ponto de vista da abordagem, as vítimas possuem centralidade. As agências estatais possuem suas próprias assessorias para disseminar os relatos que mais lhes favoreçam, sempre justificando os atos mais sanguinários em nome da segurança nacional. Basta lembrar da expressão racista "animais humanos" empregada pelo ministro da defesa israelense Yoav Gallant após o ataque do Hamas.
Estar do lado da população mais vulnerável é papel de um jornalismo que se pretende ir além da mera versão oficial. Mas como lidar com essa violência sem torná-la um espetáculo grotesco e sem impor a si mesmo a função de salvadores da pátria?
A filósofa Susan Sontag oferece um caminho, uma trilha: "Dizer que a realidade se transforma num espetáculo é um provincianismo assombroso. Universaliza o modo de ver habitual de uma pequena população instruída que vive na parte rica do mundo, onde as notícias precisam ser transformadas em entretenimento".
Além disso, acrescenta a autora, tal visão "supõe que todos sejam espectadores. De modo impertinente e sem seriedade, sugere que não existe sofrimento verdadeiro no mundo. Mas é absurdo identificar o mundo a essas regiões de países abastados onde as pessoas gozam o dúbio privilégio de ser espectadores ou furtar-se a ser espectadores da dor de um outro povo".
A realidade de um conflito armado pode ser objeto de especulação para muitas pessoas que só podem imaginar o que é viver sob uma sentença de morte em aberto. Essa condição, contudo, é vivida por milhares de pessoas em zonas conflagradas na Palestina, em Israel e no Brasil. Não é possível afirmar que tais populações sejam meras espectadoras. Estar vivo ao fim de cada dia é uma meta, enquanto poder ir e vir livremente é um direito negado diariamente. Podemos simplesmente mudar o canal ou fechar o aplicativo para nos isolarmos de determinadas situações. Para essas pessoas, no entanto, isso é impossível.
As imagens, por sua vez, têm sido criticadas por representarem um modo de ver o sofrimento à distância, como se existisse algum outro modo de ver. Porém, ver de perto - sem a mediação de uma imagem - ainda é apenas ver, ou seja, há um limite da nossa capacidade de sensibilizar o Outro.
Susan Sontag afirma que "as imagens não podem ser mais do que um convite a prestar atenção, a refletir, aprender, examinar as racionalizações do sofrimento em massa propostas pelos poderes constituídos". Ainda assim, muita coisa é possível de ser feita, como contextualizar as circunstâncias que permitem a existência de tais fatos, respondendo às seguintes perguntas: Quem provocou o que a foto/vídeo mostra? Quem é responsável? É desculpável? E inevitável? Existe algum estado de coisas que aceitamos até agora e que deva ser contestado?
Tudo isso deve ser feito com a compreensão de que a indignação moral, assim como a compaixão, não pode determinar um rumo para a ação. O mundo é mais complexo do que os recortes jornalísticos tentam fazer parecer. Isso é ainda mais verdadeiro em um contexto em que as mídias buscam cada vez mais comprimir as mensagens em unidades de sentido curtíssimas embaladas sob a forma audiovisual para manter todos ocupados consumindo imagens em movimento de forma passiva.
Se essa estratégia parece ser útil para coisas triviais do dia a dia, a mesma coisa não se pode dizer acerca de rivalidades centenárias em que todos têm razão e culpa ao mesmo tempo. O mesmo pode ser dito sobre as raízes da violência letal e da criminalidade. O emaranhado dos fios que unem tais fatos exige de nós prudência ao se posicionar.
Em paralelo, assumir a perspectiva das pessoas que sofrem não significa tratá-las como meros pacientes de um destino inescapável ou vítimas comuns de um sistema implacável. Isso seria torná-las uma massa informe. Como bem afirma Sontag, "é intolerável ter o próprio sofrimento equiparado ao de outra pessoa". Cada sofrimento é experimentado de forma única, sem hierarquizações ou falsas equivalências.
Compreender e descrever o grande quadro é uma tarefa que cabe bem aos sociólogos, mas é preciso ainda relatar essas trajetórias de vida que teimam em ser apagadas, conferir nomes próprios aos responsáveis por tanta iniquidade e preservar a memória dos que sofrem injustiças. Essas são tarefas cruciais a um jornalismo que se pretende ir além da mera factualidade a fim de transpor esse fosso que nos separa da empatia com o sofrimento alheio.
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC)
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