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Os números ocultos da violência letal
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Os números ocultos da violência letal

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Os homicídios são apontados como os indicadores mais objetivos no que diz respeito às estatísticas sobre violência e criminalidade. Não à toa, são utilizados como parâmetro internacional para comparação entre países quando se trata de violência letal. Crimes como roubos, furtos e violência sexual podem ser subnotificados, por exemplo, fazendo com que o cenário apresentado não contemple a realidade dos casos.

Campanhas publicitárias e o estabelecimento de mudanças na legislação têm o poder de puxar esses índices, o que nem sempre significa aumento nos casos, mas uma maior sensibilidade sobre o tema. Há violências que não são reconhecidas como tal por anos. Quando isso acontece, as notificações dos casos explodem. Os óbitos, por sua materialidade, contudo, são uma prova explícita que uma vida foi ceifada por causas não-naturais. No entanto, com diferenciar uma causa da outra?

O Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS) classifica as mortes violentas com causas identificadas em homicídios, suicídios ou mortes decorrentes de acidentes. Quando não é possível fazer essa identificação, o óbito é classificado como Morte Violenta por Causa Indeterminada (MVCI). Quanto mais o número de MVCIs, menos qualidade de dados sobre mortalidade e mais dificuldades um Estado possui nesse trabalho.

A edição mais recente do Atlas da Violência, uma publicação conjunta do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), revela que, entre 2011 e 2021, 49.413 mortes deveriam ter sido classificadas como homicídios, mas ficaram fora dos números. Nesse mesmo período, o Brasil não conseguiu classificar a contento 126.382 óbitos, que foram registrados como morte violenta por causa indeterminada sem, no entanto, sabermos o real motivo de tais perdas.

A projeção dos dados feita pelo Ipea modifica a posição de cada Estado no ranking nacional de homicídios e a nossa percepção sobre tais índices. São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais são líderes nesse quesito. Mesmo quando os números de assassinatos até então ocultos são projetados sobre as estatísticas oficiais, Amapá e a Bahia continuam como as duas unidades da federação mais violentas do País. No entanto, Roraima passa a ocupar a terceira posição no lugar do Amazonas. São Paulo, por sua vez, perde o posto de estado com menos homicídios do Brasil, sendo superado por Santa Catarina.

Nesse mesmo intervalo de tempo, o Ceará contabilizou 2.001 homicídios ocultos. Em 2020, por exemplo, em pleno isolamento social provocado pela pandemia do Coronavírus, 580 homicídios ocultos foram contabilizados, o que faria com que os números anuais de óbitos saltassem de 3.992 para 4.555, tornando aquele ano ainda mais violento.

De acordo com o Atlas da Violência, "ignorar a ocorrência das MVCIs pode influenciar negativamente diagnósticos e formulações de políticas públicas e impedir intervenções em aspectos sensíveis". Desprezar essa contabilidade oculta é como navegar sem um radar preciso, guiando-se apenas por impressões subjetivas.

A propalada redução dos assassinatos - divulgada pelo Governo Bolsonaro como um trunfo da desregulação das armas de fogo - perde boa parte de seu impacto argumentativo quando os homicídios ocultos passam a ser projetados sobre as estatísticas oficiais. Em 2019, por exemplo, a queda no número de homicídios teria sido cinco pontos percentuais a menos, de 22,1% para 17%, se esse cálculo tivesse sido aplicado. Como bem afirma o relatório, um índice nada desprezível em se tratando de avaliação de políticas públicas.

Providenciar dados cada vez mais confiáveis é um desafio imenso para os órgãos de segurança. E nem estamos falando da identificação racial das vítimas, um dos indicadores mais vulneráveis das secretarias de segurança do país em se tratando de acurácia. É sabido que os homens negros são alvos em maior proporção dos assassinatos no Brasil. A falta de um sistema de identificação mais preciso, contudo, impede que essa realidade seja abordada com maior detalhamento.

Em se tratando dos homicídios reconhecidos, o Ceará vive um período de recrudescimento da violência letal após dois anos com queda nos índices. A percepção de insegurança da população encontra suporte nos números: em outubro deste ano, o Ceará registrou 293 crimes violentos letais intencionais (CVLIs), tornando-se o índice mais elevado desde outubro de 2021, quando foram contabilizados 298 homicídios. Em novembro, os números se mantiveram elevados. O risco de que o ano de 2023 seja mais violento que seu antecessor é real. Ainda há tempo de o Governo Elmano mostrar a que veio na área da segurança pública, imprimindo uma marca própria em suas ações. Para tanto, a transparência na produção e divulgação dos dados é fundamental. Efetuar um diagnóstico preciso é boa parte da resolução do problema.

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