
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Abordei o modo como o crime se insere na economia formal, na coluna passada, disputando mercado e recursos com empresas de telefonia móvel e operadoras de internet. Há um caráter insidioso nessa estratégia que busca se apropriar de elementos que compõem a rotina da população no intuito de explorar financeiramente suas vítimas a fim de manter e expandir suas atividades ilegais no Estado. Trata-se de um processo de mutualismo em que o Crime se incorpora à economia formal e vice-versa.
Podemos perceber, contudo, o quanto essa simbiose entre a cultura local e a cultura criminal se torna cada vez naturalizada entre nós, constituindo-se como uma paisagem urbana. Um episódio ocorrido na semana passada é bastante ilustrativo disso. Estudantes, com idades entre 9 e 10 anos, de uma escola localizada em um distrito no município de Baturité confeccionaram armas, rádios de comunicação e coletes durante um trabalho escolar.
Os itens, feitos de papel e papelão, traziam a inscrição de organizações criminosas e o nome das marcas dos armamentos, como Glock. Conforme publicado por O POVO, "o Ministério Público do Ceará foi até a escola na quinta-feira, 3, para verificar a situação. O promotor Antônio Forte afirmou ter sentido um clima de bastante apreensão entre os funcionários, sobretudo, por a escola estar localizada em um bairro 'muito perigoso'".
Não estamos falando de um caso isolado. O acontecido em Baturité traz à tona diversas questões que merecem maior aprofundamento e preocupação por parte das autoridades e da própria sociedade. As crianças replicam o que veem e sentem. Quando é pedido a elas que retratem o seu cotidiano, nota-se que as práticas rotineiras do tráfico de drogas estão presentes naquele dia a dia. Meu filho mesmo, de 5 anos, me contou que não tinha internet na casa de uma parente "porque os bandidos tinham queimado os fios".
A atividade pedagógica desnudou um olhar doméstico de situações vividas por crianças que podem ter parentes ligados às atividades criminosas ou então veem apenas as inscrições nas paredes e a movimentação dos criminosos pelas ruas, bem como a presença da polícia em um ambiente de tensão e, paradoxalmente, de encanto. A gravidade de tudo aquilo nem sempre é entendida de forma plena na mentalidade de meninos e meninas.
Costumamos utilizar a expressão ressocialização para compreender os processos pelos quais os presos podem retornar à sociedade após terem cumprido suas medidas punitivas. É preciso, no entanto, enlarguecer o sentido da expressão, pois trata-se de desmontar e reconstruir um processo de socialização que não esteja vinculado ao mundo do crime. Por que tais sujeitos foram socializados por organizações criminosas? Suas realidades e suas identidades emergiram do aprendizado e da interação com um contexto inserido no limiar do lícito e do ilícito, do legal e do ilegal.
Uma realidade que apavora, que mete medo, mas que, ao mesmo tempo, apresenta o caminho do "lucro fácil", do se dar bem, de ser reconhecido e de ser alguém em uma sociedade tão competitiva e individualista como a nossa. E não estamos falando da periferia de uma metrópole regional, como Fortaleza, mas de uma região que une elementos do urbano, mas principalmente do rural, como no caso do distrito em questão. O Crime hibridizou seu território, adaptando-se perfeitamente a localidades mais afastadas dos grandes centros.
Há ainda mais um fardo com o qual as unidades escolares têm de se deparar. Além dos desafios trazidos pelas novas tecnologias de comunicação, dificultando a concentração dos alunos, e a perspectiva cada vez mais concreta da dissolução do trabalho formal clássico - com a emergência dos subempregos e da informalidade minando a crença na educação como chave de uma mudança de vida - as escolas se veem ainda mais porosas à criminalidade.
Isso não é um fato novo: escuto há tempos relatos da interseção entre pais, filhos e professores nessa teia de relações criminais que questionam os micropoderes da gestão escolar. O que mudou e o que pode ser considerado como diferente é a capilaridade disso e o grau de expansão e de penetração dessa lógica criminal com seus códigos e expressões.
A gramática do Crime está presente de forma difusa em nossas condutas e rotinas, fazendo com que evitemos gestos específicos em fotos e deixemos de nos movimentar em determinados locais da cidade. Sem percebermos, também somos invadidos por essa cultura criminal e por essa mentalidade. Não conseguimos mais nos manter indiferentes a essa incômoda sensação de insegurança permanente. Assim como as crianças da escola, o crime também formata o nosso imaginário. E isso não deixa de ser uma forma de violência.
Um olhar analítico na segurança pública do Ceará e do mundo. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.