
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
O mote para a campanha de 2026 já está dado e tem muito a ver com uma reportagem publicada pelo O POVO: Quem é que manda nos territórios? O jornal divulgou, no início da semana passada, um relatório elaborado pela Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), da Polícia Civil, que prevê o controle total da facção criminosa Comando Vermelho (CV) sobre o crime organizado em Fortaleza e nos principais municípios do Ceará.
Apenas duas grandes áreas, dispostas de forma diametralmente opostas no mapa de Fortaleza (Vicente Pinzón/Papicu e Grande Bom Jardim) permanecem sob o jugo dos Guardiões do Estado (GDE), que surgiu há mais de 10 anos justamente como uma resposta ao avanço da facção carioca sobre o Ceará. A mancha vermelha do CV estende-se por quase todo o restante da capital cearense, em uma clara demonstração de força e poderio econômico.
A expansão de uma organização criminosa sobre outra não ocorre por vias pacíficas, mas sempre com elevados custos humanitários à população. O Estado do Ceará registrou o mês mais violento do ano em agosto. Isso se deve, em grande parte, à ofensiva do CV em áreas sob o domínio de rivais. O número de vítimas letais pode ser ainda maior, haja vista as pessoas desaparecidas nas comunidades que se veem em meio ao confronto, como no caso de dois adolescentes, com idades entre 15 e 17 anos, que estão sumidos desde o último dia 24.
Fortaleza é um nome com muitas possibilidades de interpretação. A cidade se constituiu a partir de um forte, ou seja, de uma construção que visa a proteção de determinado território dos invasores. Quem controla o forte controla o território. Se o crime organizado se constituir como uma força hegemônica, capaz de impor sua vontade em uma cidade de 2,5 milhões de habitantes, o que restará ao poder público?
Um parêntese. Falar sobre segurança pública é falar sobre política. Antes de ser um órgão de vigilância punitiva, a polícia nasce como uma técnica de governo da população nas cidades. Qualquer posicionamento, qualquer fala, qualquer gesto de um governante gera repercussões. Tudo isso contribui para reforçar (ou não) a sensação de segurança. Desde 2011, esse vínculo se tornou ainda mais estreito, dificultando uma análise que priorize elementos mais técnicos que políticos sobre a criminalidade e a violência urbana.
Essa condição não passa batida para quem atua na oposição. O relatório da Polícia Civil foi utilizado como material de propaganda nas redes sociais por parlamentares e líderes de oposição que aproveitaram o conteúdo do documento para questionar a capacidade do governador Elmano de Freitas (PT) de impor a presença do Estado sobre todo seu território. Por causa disso, a divulgação do relatório causou mal estar internamente.
O debate não é banal. Em Sobral, a discussão sobre quem manda na cidade resultou em morte. Um homem postou um vídeo no qual dizia que a polícia era quem mandava no município. Incomodado com a postagem, o Comando Vermelho decretou sua morte. Os criminosos foram ao local de trabalho e assassinaram João Victor Santos do Nascimento, sobrinho do homem, que cobria as férias do tio e cumpria seu primeiro dia no emprego.
Em Maranguape, o município com a maior taxa de assassinatos do Brasil em 2024, circula um vídeo mostrando o exato momento em que uma família deixa sua residência após ser ameaçada por uma facção local. Os pertences são colocados em uma caminhonete. Na fachada, uma pichação determina a expulsão em um prazo de 24 horas. Ao fundo, é possível perceber uma viatura policial monitorando o processo de desocupação.
É aqui que as coisas se confundem e a soberania entra em cena. Diante das investidas econômicas em termos de sanção do governo americano contra o governo brasileiro, o conceito de "soberania" ganhou protagonismo, tornando-se slogan político. Dizer que o Brasil é um país soberano é reconhecer que o País não é regido por leis ou sanções externas ao seu território. O conceito de soberania, contudo, não é tão simples e corrente. Para muitas pessoas, a soberania tem a ver com o poder do governante e com a capacidade de exercer o seu domínio.
Por causa disso, nos comentários do vídeo da desocupação, muitas pessoas criticam a ideia de soberania, promovendo um curto-circuito entre a soberania nacional e o exercício da autoridade estatal sobre o território. Tratam-se de coisas distintas, por óbvio, mas no fundo elas ecoam o mesmo sentimento. As pessoas querem se sentir seguras, não importando se a ameaça vem dos Estados Unidos ou de uma organização criminosa radicada no Rio de Janeiro. E, no nosso caso, nem mesmo os Guardiães do Estado se mostraram suficientes para evitar tal avanço.
É injusto afirmar que o Governo do Estado não vem reagindo à altura. A Operação Nocaute é um acerto em se tratando do combate ao crime organizado. No último dia 5, mais de 30 pessoas foram presas tanto no Ceará quanto no Rio de Janeiro, incluindo um homem apontado como líder do CV em Maranguape. As prisões estão ocorrendo, as lideranças estão sendo desarticuladas, mas é preciso um sinal mais visível da "soberania" do Estado à população: a retomada dos territórios sob o predomínio do Comando Vermelho.
Um olhar analítico na segurança pública do Ceará e do mundo. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.