
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Há um acordo tácito nas Redações. Especialistas do Rio e São Paulo podem falar sobre questões nacionais, incluindo-se aí temas regionais com todas suas especificidades. A recíproca, contudo, não é verdadeira. Quem pesquisa e estuda longe do sudeste paga o preço do exótico. Quando muito um jornalista/especialista radicado no Ceará pode escrever sobre a Bahia ou Pernambuco, nada muito além desses limites territoriais. E isso não se restringe apenas à área da segurança pública, mas abrange editorias diversas.
Feita essa ressalva, é preciso que passemos a cobrar os governadores das duas capitais mais ricas do país como se deve e não como a mídia sudestina faz, de forma excessivamente passiva. Não dá para o Primeiro Comando da Capital (PCC) atuar com tanta desenvoltura sem contar com a vista grossa do Governo de São Paulo.
Três grandes esquemas criminosos vieram à tona, recentemente, sob o olhar míope de quem deveria ser o guardião da sociedade: as fintechs do crime, os postos de gasolina cujo principal combustível era a lavagem de dinheiro e o uso indiscriminado de metanol em bebidas alcoólicas, cuja repercussão afetou outros estados.
Enquanto éramos surpreendidos com a audácia das organizações criminosas, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) fazia a ponte aérea São Paulo/Brasília na tentativa de diminuir a pena do seu padrinho político. Sobre o escândalo mais recente, Tarcísio evitou vincular o PCC ao ocorrido por falta de "evidências".
"A gente não pode sair afirmando isso de forma leviana para causar um pânico na população sem mostrar uma evidência. Qual é a evidência que nós temos? Até agora, o que a gente prendeu de pessoas, o que a gente desarticulou de destilarias, eram (casos) isolados, não tinham uma relação um com o outro", disse. A mesma precaução foi esquecida ao acusar, sem prova alguma, a campanha do então candidato à Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos (PSOL), de possuir laços com o PCC.
Como se não bastasse, os recursos destinados ao combate ao crime organizado, em 2026, foram reduzidos. Segundo a proposta orçamentária prevista, o governo paulista destinará uma verba de R$ 325,8 milhões para ações de combate direto, valor que corresponde a menos da metade dos R$ 666,4 milhões reservados para este ano. Apesar de ser conhecida por suas péssimas escolhas políticas, a população paulista não merece tamanho descaso.
Estamos sofrendo ainda com a incompetência do Governo do Rio de Janeiro no que diz respeito à repressão ao crime organizado em seus domínios. O tráfico carioca se expandiu e avançou sobre o restante do país. Além da presença ostensiva do Comando Vermelho (CV), temos de assistir agora à disputa fratricida entre a facção e sua dissidência, o Terceiro Comando Puro (TCP), em solo cearense. O duplo homicídio em uma escola de Sobral, vale ressaltar, tem como motivação o conflito entre CV e PCC, ou seja, estamos sofrendo na pele a incompetência de anos e anos de desgovernos paulistas e fluminenses.
A atuação dos mercados no tráfico é complexa e multifacetada, sendo entendida não apenas como o "lado obscuro" da globalização, mas como uma parte integral dela. O crime organizado atua cada vez mais como um ator de governança e um intermediário no mercado, especialmente em áreas de fraqueza estatal. Cito alguns exemplos extraídos da literatura internacional sobre o assunto:
Duopólio da legitimidade: O crime organizado impõe suas regras a atores não criminosos, garantindo lucros ilícitos e prestando serviços sociais para multiplicar seu poder e legitimidade. Essa confluência de interesses com o governo formal é muitas vezes simbiótica.
Intermediários de sobrevivência: Em áreas de desigualdade ou instabilidade, grupos criminosos atuam como intermediários, fornecendo commodities necessárias para a sobrevivência humana (como água ou carvão) e presidindo "mercados que fornecem os bens essenciais da vida". O que vemos na área dos combustíveis é um exemplo cabal disso.
Prisões como centros de operações: Em contextos periféricos como a América Latina, os sistemas prisionais tornaram-se centros de operações para o crime organizado, onde a precariedade e o punitivismo criam "ecossistemas transgressivos" que promovem a agência criminosa e permitem a manutenção e reprodução de atividades ilícitas dentro e fora dos muros.
Como se vê, trata-se de uma teia complexa de relações que passa ao largo da atuação dos governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo na área da segurança pública. Enquanto o primeiro se vale uma sucessão quase infinita de operações militares que pouco ou nada interferem na estrutura da criminalidade, o segundo age como se não tivesse responsabilidade alguma pelo que está acontecendo, mais preocupado em ser candidato a presidente no próximo ano.
Nesse aspecto, o Governo do Ceará merece elogio por encarar o problema da criminalidade em toda sua complexidade. Quando os bravos comentaristas de internet escreverem coisas como "Faz o L" ou "Esse é o Ceará três vezes mais forte", que tal também dar uma cutucada nos governadores de São Paulo e do Rio? Tudo está interligado e o caos que vivemos hoje se deve muito a esses dois senhores e seus antecessores.
Ricardo Moura é jornalista, doutor dm Sociologia e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
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