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Como fazer política sobre uma pilha de cadáveres
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Como fazer política sobre uma pilha de cadáveres

Ninguém está dizendo que o policial não deve se proteger e, para tanto, pode vir sim a matar seu oponente. Contudo, a maneira como a sociedade e o poder público lidam com esse fato é o que define o grau de civilidade de uma nação
CORPOS enfileirados na Praça São Lucas, na favela Vila Cruzeiro, no complexo da Penha, Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 2025 (Foto: PABLO PORCIUNCULA / AFP)
Foto: PABLO PORCIUNCULA / AFP CORPOS enfileirados na Praça São Lucas, na favela Vila Cruzeiro, no complexo da Penha, Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 2025

A foto da semana passada seria o aperto de mão entre os presidentes Lula e Donald Trump, após o Brasil ser alvo da guerra tarifária dos Estados Unidos. A possibilidade de entendimento em torno de uma questão tão sensível certamente representa um trunfo para o governo petista. No entanto, a imagem que permanecerá em nossas retinas é a da fileira macabra de cadáveres estirados na Praça São Lucas, no Complexo da Penha.

Embora uma operação desse porte não seja planejada em questões de dias, soou muito conveniente ao governador Cláudio Castro (PL) que ela fosse deflagrada na mesma semana em que o Governo Federal obteve uma vitória em sua política exterior. A discussão sobre a pertinência ou não da ação mobilizou a opinião pública, federalizando, a fórceps, uma questão de âmbito estadual. "Em 2010 o Brasil inteiro viu um trabalho de integração, e hoje o Rio está sozinho", declarou.

A menção aos EUA não é fortuita. O Governo Trump turbinou a política da Guerra às Drogas, desconsiderando premissas básicas da diplomacia. Barcos são atacados, em águas internacionais, sob a acusação de transportar entorpecentes sem a mínima evidência. Pessoas são eliminadas e não sabemos ao menos se elas teriam envolvimento com o crime.

Sob a acusação de amparar o tráfico internacional, a Venezuela corre sério risco de invasão e o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, é tratado como pária internacional pela Casa Branca. Simplesmente porque sim. Porque o governo estadunidense faz o que lhe dá na telha. Houve até mesmo parlamentares "patriotas" sugerindo que a Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, se tornasse alvo dos mísseis de Trump.

A palavra-chave para entender toda essa movimentação é "narcoterrorismo". O Governo Trump atribuiu a si mesmo a condição de combater o terrorismo em qualquer canto do planeta. Designar organizações criminosos como organizações terroristas, portanto, daria todas as condições para que os EUA intervenham como bem quiserem em áreas do seu interesse, como a América Latina.

Vemos, então, um governador parabenizando o outro por "enfrentar o narcoterrorismo", seguindo a mesma cartilha da máquina de propaganda dos EUA. Em paralelo, sob a alegação de combater o crime organizado, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que prescreve justamente o quê? Classificar o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) como organizações terroristas, escancarando o País para as investidas militares estrangeiras. Em algum campo de golfe, Donald Trump sorri, enquanto mais uma vez erra a tacada no buraco 17.

Em Vineland, livro de Thomas Pynchon que deu origem ao filme "Uma Batalha Após a Outra", um dos personagens é flagrado em uma armação antidrogas da polícia federal. O advogado dele diz algo que ecoa no Brasil de hoje: "Essa lei é novinha em folha, mas as intenções por detrás são velhas como o poder". Um visitante de outro planeta que se dispusesse a conferir as atividades legislativas dos nossos parlamentares sairia com a seguinte interrogação em suas três cabeças: "Fãs ou haters?"

É justa a desesperança da população diante da opressão em morar em territórios dominados pelo tráfico. Esse sentimento, contudo, vem sendo explorado politicamente de forma sórdida. Para alguns deputados, a vida de um líder de extrema-direita nos EUA vale mais que dezenas de pessoas mortas em seu próprio país. A máquina de desinformação faz com que os moradores desses territórios comunguem dessa mesma percepção, passando a odiar a si mesmos como em um espelho invertido.

Vale dizer aqui uma obviedade: em um confronto com criminosos, o recurso à letalidade não pode ser descartado. Ninguém está dizendo que o policial não deve se proteger e, para tanto, pode vir sim a matar seu oponente. Contudo, a maneira como a sociedade e o poder público lidam com esse fato é o que define o grau de civilidade de uma nação.

É exatamente esse princípio que parece ser ignorado em operações de alto risco, como as recentemente vistas no Rio de Janeiro. Em apenas um dia, a polícia fluminense matou tanta gente quanto a polícia cearense durante todo um ano. Não dá pra normalizar isso. E o governador Cláudio Castro ainda vem a público dizer que foi "um sucesso". Sai Sun Tzu, entra Olavo de Carvalho. Tal declaração evidencia um cinismo preocupante diante do sofrimento imposto às parcelas mais pobres e vulneráveis da população.

E ai de quem se coloca contra tais narrativas. É linchado na praça pública dos comentários da internet. Até a cor do cabelo de uma especialista internacional sobre o assunto foi posta em questão. Às vezes penso que a única pessoa com lugar de fala nesse debate, para os defensores da morte, seria o atirador olímpico turco Yusuf Dikeç, por sua precisão nos disparos.

O ódio confere suporte às ações mais desumanas do Estado, dissolvendo a película de legalidade que ele possa vir a ter. A ideia de uma "democracia brasileira" é uma ficção compartilhada e essa ficção está se dissolvendo, restando apenas a força bruta em sua inteira desmedida.

 

Foto do Ricardo Moura

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