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Coisa de classe média: sobre os crimes de rico que a sociedade tolera (II)
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Coisa de classe média: sobre os crimes de rico que a sociedade tolera (II)

A pergunta que fica é: do que exatamente essas pessoas têm medo?
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FORTALEZA, CE, BRASIL, 13-06-2013: Manifestantes com faixas e cartazes. Participantes do Movimento Fortaleza Apavorada fazem passeata saindo do Palácio da Abolição e seguindo pela Avenida Beira Mar, para reinvidicar mais segurança na cidade de Fortaleza.  (Foto: Igor de Melo /O POVO) (Foto: IGOR DE MELO)
Foto: IGOR DE MELO FORTALEZA, CE, BRASIL, 13-06-2013: Manifestantes com faixas e cartazes. Participantes do Movimento Fortaleza Apavorada fazem passeata saindo do Palácio da Abolição e seguindo pela Avenida Beira Mar, para reinvidicar mais segurança na cidade de Fortaleza. (Foto: Igor de Melo /O POVO)

A ideia de que um crime seja algo reconhecido e repudiado universalmente é uma falácia. Para o sociólogo norueguês Nils Christie, os atos que denominamos de "criminosos" são decisões político-culturais que determinam o que vemos ou não como crimes. As sociedades possuem, em seu interior, graus diversos de tolerância sobre determinados atos (alguém falou em dosimetria?), bem como sobre as vítimas de tais ações criminosas. Prova disso é a dificuldade em transformar o feminicídio em uma pauta mais abrangente, que não seja vista apenas como "coisa de feminista".

Inspirando-me livremente no livro "Coisa de Rico", do antropólogo Michel Alcoforado, é possível afirmar que haveria "crimes de rico", ou seja, infrações, desvios de conduta e crimes que contam com a anuência silenciosa de nossa classe média. A sociedade se mobiliza e se indigna com crimes que a afetam diretamente, como roubo de celulares e carros - uma reação legítima, dada a violação de bens conquistados com tanto esforço.

No entanto, essa mesma indignação não se acende perante os crimes financeiros de grande monta, que movimentam bilhões. Somados esses rios de dinheiro que deixam de cair nos cofres públicos supera, e muito, a casa dos bilhões que poderiam ser destinados a quê? A investimentos na área da segurança pública, saúde e educação que poderiam, a médio prazo, contribuir para a redução dos crimes aos quais a classe média tem pavor. Quem ainda se lembra do Fortaleza Apavorada?

Mas por que isso acontece? É preciso, em primeiro lugar, compreender o conceito de classe média como um dispositivo social que tem uma função bem determinada. A sociedade capitalista possui, basicamente, duas classes: os capitalistas, que são donos dos meios de produção, e a classe trabalhadora, que vende sua força de trabalho a quem possui os meios de produção. O proprietário de um jornal é capitalista, enquanto seus jornalistas são trabalhadores, por exemplo.

Um motorista de aplicativo que ganha R$ 5 mil mensais não é um capitalista, assim como uma gerente de marketing cuja remuneração bate os R$ 40 mil por mês. Nem a plataforma do aplicativo e nem a empresa pertencem a essas duas pessoas, embora, tais valores possam fazer com que elas se distingam socialmente de quem recebe bem menos, haja vista nosso salário mínimo ser uma mixaria.

O fato de podermos ter férias no exterior, um carro novo a cada cinco anos e um apartamento financiado em 320 meses não nos faz mudar, necessariamente, de classe social. Quando estamos falando de milionários, os vencimentos dos trabalhadores estão mais próximos de quem é pobre do que dos 1% mais ricos. É aí que entra a classe média como uma função: de uma maneira bastante sofisticada e eficaz, a máquina de propaganda capitalista nos convence de que somos divididos em classes A, B, C, D e E, ou seja, classificações que levam em consideração apenas a renda, e passamos a acreditar nessa quimera.

Vamos, aos poucos, perdendo nosso vínculo original como classe trabalhadora e assumindo perfis como o de "empreendedor individual". Para muita gente, basta só "mais um pouco de esforço e vontade" para que eles sejam ricos como os influencers que andam de jatinho pra cima e pra baixo por aí. E haja vídeos de gente rasgando dinheiro e transpirando riqueza nas redes sociais. Se não der pelo trabalho que seja pela sorte. E tome jogo de tigrinho.

Ao assumirmos esse modo de pensamento, passamos a alimentar, em contrapartida, um ódio social pelos mais pobres. Para a filósofa Marilena Chauí, "a classe média funciona oprimindo os dominados e festejando e bajulando os dominantes. Por isso ela é odiosa. Ela é o cimento ideológico que garante que essa sociedade fique como está".

Por óbvio que essa idealização vai se refletir no modo como avaliamos as condutas criminosas, retomando as ideias de Nils Christie. Vamos criando, portanto, uma distinção entre "crimes de rico" e "crime de pobre". Não à toa, usamos a expressão "colarinho branco" para categorizar crimes como corrupção, lavagem de dinheiro, fraude, sonegação fiscal e manipulação de mercado em contraposição ao "colarinho azul", identidade visual do uniforme dos operários.

Há uma perigosa leniência social em relação a esses delitos, muitas vezes vistos como meros deslizes de "empreendedores frustrados" contra uma burocracia estatal opressora. A título de exercício basta conferir o tom raivoso de alguns parlamentares da bancada da bala contra os "crimes de pobre" e o silêncio ensurdecedor perante os "crimes de rico". Essa percepção é uma distorção grave, haja vista a dimensão do crime organizado ser alimentada justamente pela relação espúria entre traficantes, empresários e políticos.

Quando a ação da Polícia Federal começa a atingir o centro nevrálgico dessas ligações financeiras, ela paradoxalmente se torna o alvo mais feroz daqueles que, publicamente, clamam por um Estado mais duro contra o crime. A pergunta que fica é: do que exatamente essas pessoas têm medo? E por que a altivez usada contra o crime de rua não se direciona com a mesma intensidade contra banqueiros, empresários e políticos corruptos? Sem atacar essa seletividade penal, qualquer combate ao crime organizado será insuficiente. Já basta dessa demagogia que cresce como erva daninha, no debate público.

 

Foto do Ricardo Moura

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