Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)
Um dos efeitos sociais da pandemia do Covid-19 foi a queda nas taxas de homicídio na América Latina. Se países como México, El Salvador e Colômbia viram seus índices decrescerem conforme o rigor das medidas de isolamento social, o Ceará registra, no entanto, um fenômeno contrário: a sobreposição do avanço do Coronavírus ao incremento do número dos assassinatos. Aqui se morre tanto pelo vírus quanto pela violência. Estamos no pior dos mundos.
A redução nos assassinatos ocorrida em 2019 não se repetiu este ano, conforme a coluna já havia antecipado a partir dos dados do mês de janeiro, muito mais violento na comparação com seus antecessores. Havia a dúvida, contudo, se essa alta indicaria uma nova tendência de crescimento ou se teria sido apenas um ponto fora da curva. As expectativas mais pessimistas não tardaram a se concretizar: muito por conta do motim ocorrido na Polícia Militar, fevereiro bateu o recorde para aquele mês, com 459 assassinatos.
Março foi assombrado com o anúncio da chegada do vírus ao Estado. Havia, contudo, a perspectiva de que a quarentena viesse seguida de uma diminuição nos casos de homicídio, haja vista a restrição da circulação de pessoas devido ao isolamento social. Não foi o que aconteceu. Descobrimos, da pior forma possível, que as dinâmicas da violência e da criminalidade não estão sujeitas às medidas de prevenção sanitária. Pelo contrário: a taxa de homicídios no Ceará em abril é de 14 assassinatos por dia, bem superior a janeiro - antes da eclosão da pandemia, portanto - quando foram contabilizados 8,5 assassinatos diários.
A escolha política por uma estratégia de segurança pública focada na contenção cobra seu preço quando se vê confrontada por situações limites. Os dois picos de violência letal registrados este ano possuem um aspecto em comum: a sobrecarga enfrentada pelos órgãos de segurança para manter o policiamento funcionando. Se a paralisação dos policiais militares durante o motim fez com que o efetivo sofresse baixas significativas, a pandemia está exigindo um esforço extra que é o de reprimir aglomerações e fechar estabelecimentos comerciais.
O resultado direto desses dois momentos de curto-circuito na área da segurança é o aumento de 86% nos homicídios na comparação entre os primeiros quatro meses de 2019 e 2020. Vale ressaltar que os números finais de abril ainda não foram computados. Desde a semana passada estamos em meio a uma declaração de conflito aberto entre facções rivais cujos desdobramentos ainda estão por serem conhecidos.
Embora o vírus e a violência sejam duas ameaças letais, há um fator que as diferencia radicalmente. A vitimização pelo Covid-19 ocorre de forma mais aleatória, embora quem possua mais recursos tenda a sofrer menos com as consequências trazidas pela contaminação. O coronavírus surgiu inicialmente nas áreas mais ricas e urbanizadas de Fortaleza, mas os casos se espalham hoje por todos os bairros perfazendo a trajetória litoral-sertão.
Os assassinatos, por sua vez, estão muito restritos a um determinado segmento da população e a territorialidades circunscritas, dificilmente atingindo pessoas que não estejam nesses territórios de exceção. Embora estejamos presenciando um processo de metropolização dos homicídios - haja vista a alta incidência de crimes do gênero cometidos na Região Metropolitana - o perfil das vítimas permanece o mesmo: homens jovens, pobres, de cor parda ou negra, moradores das áreas mais vulneráveis das cidades.
Em algum momento, no entanto, haverá a confluência entre as duas letalidades: a causada pela pandemia e a causada pelos assassinatos. Veremos então uma dupla incidência de flagelos sobre comunidades que já vivem em condições sociais e econômicas precárias. Trata-se de um destino já anunciado, mas que, ao mesmo tempo, é incapaz de ser alterado.
Quando isso ocorrer, haverá um risco considerável de as vítimas da pandemia sofrerem do mesmo descaso com que lidamos diariamente com as vítimas dos homicídios. Serão tantas, tão anônimas e tão distantes de nós que se tornarão apenas números em uma estatística fria. Chegado esse momento, o Covid-19 se somará a mais uma de nossas chagas cotidianas crônicas e insolúveis, como a falta de saneamento básico e as doenças tropicais.
Sei que essa previsão pode soar exagerada ou alarmista. Convém lembrar que moramos no Estado que contabilizou mais de 5 mil homicídios em um único ano sem que esses números de guerra afetassem o nosso cotidiano e muito menos nossa economia. A experiência demonstra que somos imunes às dores de quem não é nosso semelhante e insensíveis aos clamores de famílias inteiras que veem seus filhos morrerem diariamente à espera de justiça. Infelizmente, esta pandemia não deverá despertar nossa empatia ao sofrimento alheio. Tão logo o isolamento se encerre ainda assim permaneceremos isolados.
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