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Doce americano
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Doce americano

Tipo Crônica

A Jorge Leorne Aguiar

"Nem só de pão vive o homem", diz a metade do bíblico versículo. Sem heresia, completaria eu: "Mas de bagulho também!". Amante confesso das comidas simples, e por isto mesmo memoráveis, vem-me à lembrança, de priscas eras, o rebuçado que empresta seu nome a esta crônica. Perdido nas brumas do esquecimento, o doce americano era um confeito muito apreciado pela garotada, por seu aroma e sabor inconfundíveis, e um terror para os adultos, em razão de sua firme e pegajosa consistência, danada para arrancar bloco de obturação e escangalhar dentaduras. No retângulo do tabuleiro, era ver uma bandeira da Itália esmaecida. Vendia-se o regalo às talhadas, cortadas à espátula de pedreiro e envoltas em papel de embrulho. Baratinho e gostoso...

Preparado à base de muita essência química, açúcar e toques de limão, o doce era uma novidade gustativa e olfativa que enfeitiçava a gurizada. Cheirava a detergente e no paladar era de um azedinho intenso e apaixonante. Quem o comercializava era uma dupla de irmãos, gêmeos cafuzos, magros e altos, de cabelos crespos estirados e roupas coloridas, aborrecidos e antipáticos. Bateu o recreio, a meninada corria para o portão do Colégio Cearense para comprar a iguaria. Como eram parecidíssimos e se vestiam igual, pensava-se que a divina ubiquidade era um dom que possuíam, já que a mesma figura podia ser encontrada em dois lugares da cidade ao mesmo tempo. Muita gente dizia que, sob a bancada, uma gaveta cheia de baseados aguardava outros clientes fiéis.

Nunca mais os vi, os gêmeos cafuzos e o doce. Os vendedores não pareciam ser cearenses, não só pelo sotaque, com "s" chiado e "t", "d" e "n" por demais linguodentais, como também pelo jeito desabusado e folgazão. Hoje ninguém conhece mais a merenda, cuja receita deve estar guardada em algum arquivo secreto da Nasa. Fico imaginando como os politicamente corretos pais de hoje veriam seus filhos empanturrando-se com um bagulho ácido e açucarado, de procedência desconhecida e valor alimentício duvidoso. Seria um ridículo festival de chiliques e desmaios. E nós, os e as da minha geração, nem morremos nem tivemos uma dor na unha por causa disso. Às vezes, do nada, a guloseima surge na minha mente, sabendo ao gosto imorredouro da infância.

O doce americano está na mesma categoria de outros acepipes preferidos pela petizada do meu tempo e que vêm desaparecendo ou já se foram de todo. O quebra-queixo, um doce feito de coco e açúcar, popularíssimo nas praças e paradas de ônibus, outro que fazia medo aos muitos desdentados de então. O famoso puxa-puxa, preparado com melado de cana-de-açúcar que, quando endurecia, virava o alfenim, ambos vendidos por uma mulher gorda e não muito higiênica que fazia ponto na entrada da Cidade da Criança. O pirulito de tábua, enrolado num papelote branco e cheio de formiga por cima. O picolé caseiro da Aerolândia, nossas línguas roxas das falsas uvas de laboratório. Foi-se tudo embora, adeus, fui. Como não preservamos nada, acabou-se o que era doce...

Foto do Romeu Duarte

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