Logo O POVO+
Rusgas
Foto de Romeu Duarte
clique para exibir bio do colunista

Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Rusgas

Tipo Crônica

À memória de Armando de Hollanda

Já gostei bem mais de ti, arquitetura. Além de te praticar, como teu profissional, acompanhava contrito o debate que instigavas e que te movia. Contando quase 40 anos de envolvimento contigo (é tempo, não?), bate-me o desinteresse, um certo fastio, um olhar sem procurar ver. "Triste Bahia, ó quão dessemelhante estás e estou do nosso antigo estado!". Trocando o chão natal do poeta Gregório de Matos, autor do arretado soneto, pelo teu nome, é assim como me sinto. Talvez por me encontrar tão afastado de ti ou por te descobrir sempre envolta, nos últimos anos, em brumas de irreais mistério e relevância. É, nosso caso, de tórrido, passou a frio, formal, protocolar, reconheçamos. Deixaste de ser a moldura da vida para tentar ser esta própria: este foi teu pecado, querida.

Claro, como és tão velha e tão nova quanto o sol de cada dia, já te comportaste assim antes. Frívola, já foste barroca, eclética, pós-moderna. Contudo, nesta última saison, abusaste. Quando meteste na cabeça que entortar prédios, criar espaços caríssimos de projetar, construir e manter, e abrir mão da função para celebrar literalmente o vazio seria o must, chegaste longe demais. Aliás, quem passou da conta fomos nós, arquitetos, que te criamos e recriamos todo dia. Falo de ti como se fosses autônoma, o que não és, ou seja, o problema e a solução são nossos, não teus. Achava-te mais bela quando eras silenciosa, enxuta, essencial, alimentada do que jejuavas. Hoje, teus conceitos, quanto tu tão antigos, são vendidos com outros nomes neste teu brutalismo de butique...

Tenho acompanhado teu drama nesta aziaga quadra da pandemia. Foste posta em xeque pelo vírus, que te fez refém da Carta de Atenas, feita para as urbes. As casas atualmente cumprem funções de moradia, local de trabalho, recreio e circulação. "As casas como as cidades, as cidades como as casas", tal como te conceituaram Platão, Alberti, Heidegger, Artigas e van Eick. Teus corredores são ruas, tuas salas são praças, teus quartos são casas dentro da casa, teus jardins, parques. Porque agora te usamos mais, conhecemos bem todos os teus muitos defeitos. Mas, mesmo deixando a desejar, ninguém tirará de ti teu predicado afetivo e simbólico, que te faz memorável e, às vezes, monumento. E quem não tem casa e faz do mundo o seu lugar, papelão como tijolo e telha?

Esta vil doença resgatou do fundo do teu baú, arquitetura, a simplicidade e o valor da vida humana. Como sabes, há males que vêm para bem. Esse colega que homenageio com esta crônica, pernambucano de boa cepa, inventou um roteiro para construir no Nordeste que serve de norte para ti, doidivana, em toda e qualquer região deste infecto planeta. Decerto, criar uma sombra, recuar as paredes, vazar os muros, proteger as janelas, abrir as portas, continuar os espaços, construir com pouco, conviver com a natureza e construir frondoso são ainda preceitos úteis a ti aqui, maluca, e não esses guizos falsos da alegria que te encantam, palhaça das perdidas ilusões (grato, Orestes Barbosa). Quem sabe agora tomas jeito e voltas a servir o homem, sempre o teu destino.

Leia também | Confira outras crônicas de Romeu Duarte clicando aqui

Foto do Romeu Duarte

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?