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A desejada das gentes
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

A desejada das gentes

Tipo Crônica

A Henrique Baima

Recebi a notícia pelo celular através da Emília, minha filha mais velha: "Pai, a primeira dose da tua vacina está marcada para o dia 03/04, às 15 horas, na UAPS Evandro Ayres de Moura, no Conjunto Palmeiras". Pensei com meus carcomidos botões: "Ora mais, três horas da tarde de um sábado, tanta coisa boa para fazer num momento deste, que agenda terrível e logo lá no cafundó de Judas "carioca" (como dizia um amigo do meu pai)!". Mas, fazer o quê? Já era sexta-feira e, a esta altura, vacina, como dinheiro, é bicho que não aguenta desaforo. É tomar ou tomar. Meu caro concunhado Henrique, a quem estas mal traçadas são dedicadas, ofereceu-se para ser meu condutor. "Conduzindo Miss Duarte!", frescou ele, como é do seu feitio. Era conformar-se com a sorte e brá.

No dia seguinte, uma hora antes, seguimos para o compromisso. Cidade vazia, pegamos a BR-116. Viramos à direita no 4º anel viário e entramos no bairro, no limite sul de Fortaleza, pela Rua Catolé. Foi uma dureza encontrar o local da imunização. Ninguém sabia onde ficava, ninguém informava direito, talvez por medo do aspecto dos dois sujeitos, ambos barbados, um cabeludo e o outro de boina. Dei-me conta de que fazia mais ou menos 25 anos que não andava ali. A primeira e última vez foi no batizado da própria Emília, numa igreja humilde dirigida por padres italianos ligados à Teologia da Libertação. O conjunto fervia de gente nas ruas. Lockdown, nem pensar. Lembrei-me da histórica luta dos seus moradores para fincar residência digna ali. CP, resistência é o teu nome...

Achado o endereço redentor e no horário marcado, já identificado e submetido à condição de idoso, fui gentilmente levado a uma sala de espera. Aí bateu a velha paúra de injeção. "Será a agulha grande e grossa demais? Será que vai doer? E se eu desmaiar?". Uma senhora me olhava com uma cara de quem estava lendo os meus pensamentos. Chamado ao posto, sentei-me, dei meus documentos e entreguei o braço esquerdo à aplicação do imunizante. Solícita, a enfermeira informou que me seria inoculada a Coronavac. "E se eu me transformar num jacaré?". Ela riu e brincou: "Talvez o senhor fique melhor...". Terminado o serviço, indolor, agradeci e dei vivas ao SUS. Meu concunhado filmara tudo: "Vai ser um sucesso no Facebook!". Na volta, a tarde se despedia.

Mais tarde, fiquei refletindo sobre a experiência. Vi gente gritando e brigando com o segurança para ser fotografada com a mãe sendo vacinada, chorando por ter sido abençoada com a primeira dose, se ajoelhando e levantando as mãos para o céu dando graças a Deus, se abraçando e dançando com as atendentes, coisas que nunca havia visto antes numa vacinação. A que ponto chegamos, achar que uma mera obrigação governamental é uma dádiva divina, concedida a uns poucos felizardos... E o bom é que muitas pessoas ali haviam dado os seus votos a esse cruel (des)governo que aí está, o que me deu até alguma esperança. Foi muito bom ter revisto o bravo Conjunto Palmeiras. A cidade é um livro construído por todos. Agora, é tomar a segunda dose. Saúde!

 

Foto do Romeu Duarte

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