Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.
De minha casa, à distância de um grito bem dado, observo o edifício arruinado. Está ali há pelo menos vinte anos. Levantado em uma esquina movimentada do Dionísio Torres e talvez por isto pensado como um prédio de uso misto, amarga cruel abandono. O que um dia foi motivo de alegria para empresários e proprietários, hoje nada mais é para estes do que uma grande dor de cabeça. Seu esqueleto de concreto à vista já exibe fissuras e bicheiras. Sua carne de alvenaria de tijolos cerâmicos, inacabada, tinge-se de limo e pátina, sinal da dura passagem do tempo. Projetado para ser moradia de gente, tornou-se um imenso pombal, com seus habitantes alados lutando pela existência contra os esfomeados gaviões. Sua entrada, há muito vedada, é a negação de si mesmo.
Seus colegas à volta, de destino mais feliz, parecem sentir asco e repulsa quanto à sua presença. Bem vestidos em suas roupagens contemporâneas, dir-se-ia vê-los rir da andrajosa modinatura arquitetônica do parceiro. Quando chove, como agora neste último abril, transforma-se numa gigante cascata construída, paraíso de mil goteiras. Ao sol, é só o cobogó de si, vazado, por terminar, sem esquadrias ou fechamentos, aberto a todas as intempéries. À noite, quando seus vizinhos se acendem e viram imensas luminárias, é o breu em forma de arquitetura, metendo medo em quem fura o confinamento. Assim, não é mais que um pária, destituído de qualquer atenção. Quem o vê, só deseja a sua ida ao barro. Sem dó nem misericórdia, a demolição é o seu final.
Digo isso passando meus cansados olhos pelo jornal, quando sou chamado à ordem por uma notícia assaz interessante. Sobre o féretro de uma residência de veraneio de antigos e atuais poderosos na Beira-Mar, será levantado um majestoso edifício, que terá, entre outras maravilhas já prometidas no seu projeto, uma garagem ao nível de cada apartamento. Assim, a felizarda família milionária, além da vista generosa do Oceano Atlântico, terá no seu living-room a presença de um veículo auto-motor de marca, objeto de sua admiração, bem como da dos seus convivas. Fico pensando no dono do sesquipedal apê, bem assim refestelado na sua chaise-longue, drinque na mão, vendo tudo aquilo: "Venci na vida! Se um dia fui pobre, não me lembro". No horizonte, a superlua...
Na minha pequena e preconceituosa visão, hipócrita leitor(a), ambos prédios acabam constituindo uma única arquitetura, a de uma edificação chamada Edifício Brasil. Um amálgama de uma construção feita para aperreados, aquele povo que vende o almoço para comprar o jantar, mesmo assim ostentando o que não tem nem poderá ter, com outra construída para os "vencedores" dessa mesma classe, mais os poucos ricaços de sempre. Na portaria e nos serviços gerais, lambendo as botas da sobrevivência, os pobres que adoram apanhar dos seus amos, imaginando um dia serem seus iguais, e o lúmpen, de tudo capaz e capaz de tudo. A arquitetura, arte social de construir, espelha tudo isso. É ter olhos para ver e estômago para digerir. E aí, que tal o Buick na sala?
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