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Santa cachaça
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Santa cachaça

Tipo Crônica

Noite dessas, deitado ao comprido no meu sofá de estimação, fui chamado a terreiro por um chiste do Papa Francisco. Irreverente como ele só, argentino e torcedor do San Lorenzo de Almagro, deu a seguinte resposta a um pio padre paraibano que visitava a Santa Sé e lhe rogou que rezasse pelo Brasil. Disse o Santo Padre, com um sorriso brejeiro no rosto: "O Brasil não tem salvação. É muita cachaça e pouca oração". Dei uma gargalhada na hora e continuo rindo da piada até agora. Logo em seguida, as vestais do catolicismo, na verdade os fariseus de sempre, começaram a sua chiadeira contra o papa comunista: "Não tem compostura, é o anticristo sob as vestes papais, vai já colocar a foice e o martelo por sobre a cruz, monstro, ai, morri!". A hipocrisia e as suas mil caras...

Gerado e cevado em um lar devoto à doutrina católica, aluno dos maristas, para mim não foi fácil, como não deve ter sido para os meus contemporâneos, escapar às amarras religiosas e me inventar como um agnóstico ser pensante. Entretanto, compreendendo a religião como uma legítima expressão da cultura, considero as crenças como algo inerente ao ser humano. Se houver céu, em razão das muitas igrejas que ajudei a restaurar, quem sabe deveria merecer um bom lugar nesses excelsos paraísos, apesar de achar que o meu destino final será um lugar quente, escuro e mais animado, como vaticinava a minha mãezinha. O homem cria as tradições e se torna o seu dono, ameaçando com a fogueira aqueles que se opuserem à sua lei. Eita, Sobral: Aí dentro, Guarany!

Mas, como dizia meu querido e idolatrado Nelson Rodrigues, falo, falo e não digo nada. Nosso Santo Padre de Roma, no seu relaxo, mencionou o consumo da água que passarinho não bebe, arrombado, como aqui dizemos, por estas bandas. Sem querer tirar onda com o Sumo Pontífice, quantas histórias que associam a canjibrina à reza não conhecemos, não é mesmo? Das melhores é aquela na qual o sacerdote, na hora sagrada do ofertório, prepara o cálice com a água e o vinho e, súbito, passa um rato sobre o altar. Ordena o cura ao sacristão: "Mate o bicho!", ao que, solícito, o auxiliar toma a taça da oferenda e ingere sofregamente o seu conteúdo. Contei essa pilhéria em um já longínquo almoço na minha casa da Base Aérea e fui expulso da mesa. Ah, bons tempos.

Para onde vai a aguardente que derramamos quando dizemos "pro santo"? O que acontece quando chamamos a diabinha de santa-branca, santa-maria, santinha? Será que beber cachaça não seria uma espécie de rito, uma augusta forma de prece, uma cerimônia pagã, uma liturgia de contato com a divindade, um ritual que nos remete à natureza e aos saberes e fazeres ancestrais e que nos religa, sem pecado, às nossas origens? Seria o ato de ingestão da pinga algo realizado em feitio de oração, que nem o samba, tal como nos sugere Noel? Sei lá, tantas perguntas sem solução, que nem o mais calejado cotovelo de balcão de botequim poderá replicar. Só sei, caros, que essa história do atual inquilino da Basílica de São Pedro me deixou com uma bela sede. Vigiai e orai!

Foto do Romeu Duarte

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