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Eu e outro eu
Foto de Romeu Duarte
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Eu e outro eu

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Dia desses, andando pelas vielas do Joaquim Távora em busca de assunto para cometer crônicas, dei de cara com um sujeito que era um clone meu. Camisa de meia de manga comprida, gola rolê e rosa-choque (pois é, a moda Barbie chegou para ficar), calça de pegar lambari no brejo de cor cáqui, boina inglesa e mules nos pés, era a simpatia em pessoa. Andava sacudindo o corpo num molejo malandríssimo, ao tempo em que cantava "Meu limão, meu limoeiro" do Wilson Simonal. O cara era a minha cara, esculpido em Carrara, ou melhor, cuspido e escarrado, apesar de, aqui e ali, existir alguma coisa artificial que me deixava invocado. Dei-lhe boa tarde ao que ele respondeu "Aí, chapa, cadê o abraço?". Parei e o fitei. "Qual é, doido, não me conhece, não?".

Tirando a indumentária esquisita, sentia-me diante de um espelho. O mesmo rosto, as mesmas rugas, a mesma barba grisalha, as mesmas olheiras fundas. A mesmíssima barriga, as mesmas unhas roídas, as mesmas orelhas cheias de pelos. "Quem é você?", indaguei-lhe. "Eu sou você, só que melhor, muito melhor, melhoral". "Qual é a tua, cara?", perguntei-lhe, já começando a me aborrecer. "Calma no Brasil, chefia", respondeu-me, dando um giro e voltando ao mesmo lugar, encarando-me. "Vim para substituí-lo", completou, dobrando-se em gargalhadas. Já com o cão nos couros, taquei-lhe um bofete nas fuças. A minha mão atravessou a face do imbecil como se este fora um fantasma. "Égua, lai vai, que diabo é isso?!", exclamei, enquanto o fela se acabava de rir.

"Como você é burro e limitado, mon sembable, mon frère!", tascou-me ele, num riso esganiçado. "Seu prazo de existência acabou. A Inteligência Artificial, IA para os íntimos, nossa deusa suprema, determinou que eu fosse criado para ficar no seu lugar. Um Romeu Duarte de alta qualidade, muito mais refinado e culto, pegando na chave e torcedor do Fortaleza", curtiu. Aí o anzol da ira feriu-me os testículos. "Vá se lascar, seu fuleiragem! Quem você pensa que é?!", gani. "Eu sou você, só que numa versão superior, moderna, ultra-chique, Oppenheimer, baby". "Quer dizer então que, para mim, é fim de papo?! Que serei trocado por você, seu verme?!", provoquei-o. "Em três, dois, um...", falou-me, mostrando-me os dedos na conta da mão impalpável. Gelei. Tchau, bença.

Acordei completamente transtornado. Tremendo, fui à cozinha tomar um copo d'água. "Será que ainda estou dentro daquele pesadelo? Aliás, o que é a vida real, o que é sonho ruim?", disse de mim para comigo, sorvendo o líquido bem devagar. Liguei a televisão para espairecer, como se fosse possível. Crimes, estupros, assassinatos, safadezas, o cardápio do noticiário violento e cotidiano. De súbito, surge na tela um comercial de carro, com uma cantora e a mãe dela, também cantora, há muito ida, ambas solfejando uma canção do Belchior. Um automóvel antigo, outro novíssimo, "é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem". Minhas mãos geladas mais uma vez. "Ainda refém daquele nightmare", lamentei. Desliguei o eletrodoméstico. Os bares fechados.

 

Foto do Romeu Duarte

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