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O homem detestável
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O homem detestável

Imaginando que a sua droga de vida tivesse como causa um pecado que ele mesmo desconhecia, foi à igreja se confessar
Tipo Crônica

Ninguém gostava dele. Desde criança as pessoas lhe viravam as costas. Seus pais nunca lhe tiveram a menor consideração. Deles só recebeu carões, violências diversas e desprezo. Jamais conheceu sentimentos tais como amor, respeito, carinho e cuidado. Nunca uma mulher o acolhera com ardor. Até as prostitutas, que ele amiúde comprava, lhe tinham asco. Não que fosse feio, imundo ou canalha: o problema é que não havia uma alma que simpatizasse com ele. Quando tentava ser agradável, aí é que as coisas pioravam. Falso era o adjetivo mais brando que lhe devotavam. Nas muitas noites passadas em claro, no quarto do pequeno apartamento onde morava, uma pergunta ressoava em sua mente: "Por quê?". A primeira luz de cada dia era mais uma rude chicotada.

No trabalho, mesmo sendo assíduo, correto e honesto, era invisível. Ninguém reconhecia o que fazia, ninguém lhe dava qualquer mérito. Como um para-raios, as reclamações e admoestações choviam-lhe sobre a cabeça cada vez mais calva. O cafezinho chegava-lhe sempre frio, sinal do seu desprestígio. No ônibus, no supermercado, no cinema, nos lugares onde procurava aplacar sua dor em troca de dinheiro, era frequentemente humilhado: "Ainda usa grana, mané?", "O senhor não tem cartão nem pix? A fila está aumentando por sua causa!", "Vai embora, coroa, vai atazanar o cão!". Na Cidade da Criança, onde brincara sem amigos na infância, os pombos lhe evitavam, mesmo ele jogando pipocas para eles. Ao chegar em casa, só boletos e nenhuma mensagem de alguém. O vazio.

Imaginando que a sua droga de vida tivesse como causa um pecado que ele mesmo desconhecia, foi à igreja se confessar. Em quase uma hora, contou toda a sua triste existência, o rosto contrito de olhos fechados pregado à grade de madeira. Por fim, perguntou ao padre qual seria a sua penitência. Repetiu a pergunta mais duas vezes. Súbito, descobriu que o seu confessor dormia a sono solto no confessionário. "Nem Deus quer conversa comigo", pensou de si para consigo. Levantou-se do genuflexório e foi se sentar em um dos bancos da nave principal. O Cristo pregado na cruz, os santos e santas em seus pedestais não tinham para si o ar compassivo e amoroso de quem se espera algum socorro, mas o aspecto duro e austero de quem escolhe alguém para ir ao inferno. Amém.

Como não fazia falta a ninguém, não havendo quem se importasse com ele, no caminho de volta ao seu humilde lar, teve uma ideia: poria um desfecho aos seus dias. "Cansado de ser tratado como um cão, de comer diariamente o pão que o diabo amassou, de não merecer um olhar, uma palavra, um gesto a não ser o desapreço, o que me resta senão isso?", ruminou. Em casa, preparou a carta de despedida, carregada de lamentações, e catou o revólver no fundo da prateleira alta do armário embutido. Nunca o usara, nem esportivamente. "Este é o meu passaporte para a felicidade", pensou, "Sei que a minha morte não será chorada por ninguém e esta será a minha vingança". Encostou o cano da arma contra a têmpora. Apertou o gatilho. Bateu catolé. "Lai vai, nem a morte gosta de mim...".

Foto do Romeu Duarte

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