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A tragédia como jogo ou vice-versa
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

A tragédia como jogo ou vice-versa

Tipo Crônica

A Clóvis Holanda

Num futuro extremamente próximo ao nosso presente, quem sabe daqui a alguns meses, ele sentou-se em sua chaise-longue, instalada em uma das salas de estar do apartamento gigantesco do super-prédio do Meireles, um dos metros quadrados mais caros da América Latina, e pediu com a voz à IA do computador onipresente (espelho, espelho meu, haverá na Terra alguém mais poderoso do que eu?) o conflito no qual apostaria as suas bitcoins. O autômato, sempre solícito (aguardem cartas...), leitor das colunas sociais de Fort City, ofereceu-lhe o menu: PT x PL, Irã x Israel, Haddad x mercado/Congresso, Xuxa x Angélica, Virgínia x Zé Felipe, o que você é x o que você pensa que é x o que os outros pensam que você é. Entediado, como todo bom burguês, entrou no multiverso.

Xuxa x Angélica e Virgínia x Zé Felipe pareceram-lhe muito café pequeno, coisa de pouca monta, negócio de gentinha. De última hora, apareceu-lhe a contenda Francisco Cuoco x Tony Ramos, aquele falecido no fim de semana, tidos como galãs máximos da Globo. Enfarado, ignorou o bafafá. Queria entrar na disputa da hora, briga de cachorro grande, algo que lhe trouxesse dividendos para muito além da montanha de caraminguás que recebia everyday, como gostava de dizer no seu inglês de porta de hotel. Apostou na pendenga PT x PL. Convenceu-se de que, naquele momento, só restaria ao núcleo crucial do golpe o pedido de prisão domiciliar, de tornozeleira eletrônica, aos canalhas envolvidos. "Zero bala, daí não sai grana, meu caro", disse de si para consigo. Controle na mão, avante.

"E aí, bet, me dê uma chance, cara", pediu ao robô que naquele momento tinha total controle da sua vida. "Vá de trump e netanyahu contra o Khameney, sujeito", disse-lhe a tal solerte máquina. Como aperitivo, assistiu aos bombardeios de lado a lado. Não se entusiasmou. "Talvez eu mate o aiatolá iraniano daqui a duas semanas, quem sabe...", afirmou o mandatário estadunidense, na tela, com uma boquinha que lembra aquilo dele lá. "É, o tal do Iron Dome não é lá essas coisas", resignou-se o apostador. Restou-lhe a pendenga Haddad x mercado/Congresso. "Esse cara do PT, um reles comunista, além de ser sonolento no discurso, quer taxar os ricos como eu e garantir o welfare state. Aqui, ó!", rugiu, apertando os testículos. Premiu tanto os possuídos que saiu urrando de dor, rumo ao quarto.

Por conta de umas tantas muitas doses de uísque que havia consumido na noite anterior (não há quem aposte sem beber), acordou tarde no dia seguinte, um sábado. Na cabeça zonza e dolorida, o embate: o que eu sou x o que penso que eu sou x o que os outros pensam que eu sou, resto das reflexões sobre as apostas passadas, ou melhor, sobre a própria vida. O espelho, implacável, o aguardava no banheiro: "Nada mais és do que um babaca metido a esperto, um malandro otário, um ganhadorzinho de dinheiro que fez fortuna na base do roubo e da sacanagem, um fuleiragem". Tinha o espelho em alta conta, bem mais do que o psicanalista que a ex-mulher o havia sugerido. Mudou de roupa para caminhar na Beira-Mar. Súbito, uma gata lhe retribui o olhar. Então, sorte grande!

Foto do Romeu Duarte

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