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Trem azul
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Trem azul

O disco de estreia que dividiu com seus camaradas das Alterosas ouvi quase até furar. As melodias complexas, os acordes dissonantes, os arranjos ousados, as letras que falavam de viagens para fora e para dentro, tudo isso me encantava
Tipo Crônica
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À memória de Lô Borges

1982, Projeto Pixinguinha, Theatro José de Alencar. Um cara com cara de garoto (que sempre preservou), maçãs do rosto salientes, entra no palco com a sua guitarra e uma timidez impressionante. Banda afiada de apoio, desfia ante a numerosa plateia um a um dos seus clássicos, por ele compostos com seu irmão no final da sua adolescência e cantados por seu grande amigo, o tênis encardido no clube da esquina. Completa o set com canções que havia lançado no álbum "A Via Láctea", de 1979, um vento de maio equatorial. A casa de espetáculos veio abaixo quando o show terminou. Acho que o músico nunca havia tocado para tanta gente e nunca imaginou ter fãs numa cidade tão longe da sua BH natal. "Todos ao Estoril! Alguém leva o cara!", gritou alguém. O artista sumiu na noite...

Já conhecia bem o trabalho dele. Mescla de rock, jazz, psicodelia, MPB e outros baratos afins. Direto do cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro Santa Tereza, coração musical pulsante da capital mineira, tudo o que você podia ser. Que tal um girassol da cor do seu cabelo, Lennon e McCartney? O disco de estreia que dividiu com seus camaradas das Alterosas ouvi quase até furar. As melodias complexas, os acordes dissonantes, os arranjos ousados, as letras que falavam de viagens para fora e para dentro, tudo isso me encantava. Ah, quantas horas não passei apurando o ouvido e os olhos para decifrar um verso, apreender uma escala, degustar um solo, devorar a ficha técnica dos discos e saber quem tocava em cada faixa. Canções potentes, belas, sublimes...

Por aquela época, pré, durante e pós Massafeira, tinha deixado o rock'n'roll meio de lado e passei a estudar a música brasileira. Fazia parte de um grupo que se reunia amiúde para escutar, tocar e compor música e que tinha nos mineiros alguns dos seus heróis musicais. Participamos de festivais e fizemos shows, mas a vida, com o seu próprio curso, nos levou para outras paragens. Só sei que o matulão da mineirada foi a nossa trilha sonora por muito tempo. Aliás, pelo menos para mim, continua sendo e certamente será. Além disso, a imensa e sincera amizade e o pétreo respeito que até hoje une aquele povo, tão difícil de encontrar aqui, nos fascinava. O certo é que Fortaleza se tornou uma praça simpática aos musicais da terra de Drummond. Certeza de casa cheia e aplauso.

Passei a semana atrasada com uma grande preocupação na cabeça e uma dor no peito. As notícias que me chegavam do cara com cara de garoto não eram boas. Hospitalizado, sedado, traqueostomizado, dependente de hemodiálise. Após hiatos criativos, desde 2019 fazia um disco por ano com parceiros os mais diversos. Todavia, o tal do streaming, que rege cruelmente o meio fonográfico e refém do jabaculê, virou-lhe as costas. Nunca mais escutei qualquer canção sua. Súbito, no domingo à noite, entre uma e outra novidade ruim que a televisão adora divulgar, a pior de todas. Se eu morrer, não chore não, é só a lua na paisagem da janela, quem sabe isso quer dizer amor. Arrasado, tentei dormir e não consegui. Vento solar e estrela do mar. Vá em paz, Lô, muito grato por tudo.

Foto do Romeu Duarte

Política, cotidiano, questões sociais e boemia. Estes e mais temas narrados em crônicas. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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