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Quando a emenda é pior que o soneto
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Quando a emenda é pior que o soneto

Parece que mais uma vez, por motivo da ação dos podres poderes, perderemos uma excelente oportunidade de elaborar a lei maior da cidade de forma equilibrada e justa
Tipo Crônica
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ÁREA de desmatada na Floresta do Aeroporto Internacional Pinto Martins  (Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves ÁREA de desmatada na Floresta do Aeroporto Internacional Pinto Martins

Depois de inúmeras horas de debate, de diversas audiências públicas e de várias proposições discutidas entre os vereadores e a comunidade, o Plano Diretor Participativo (PDP), em processo de revisão e atualização, se vê agora ferido de morte como diploma legal em razão do seu atropelamento por um "emendão". Cacifado pelas assinaturas de 34 edis, 33 deles pertencendo ao grupo de apoio do chefe do executivo municipal, fica difícil, para não dizer impossível, que a manobra não tenha sido preparada no círculo que protege o prefeito e com o conhecimento e a anuência deste. Apiedo-me das pessoas e instituições que perderam o seu precioso tempo tentando contribuir para melhorar a Cidade e defendê-la de más práticas. Valendo: o murro na mesa e a alteração de regras.

Em plena COP-30, justo quando são discutidas alternativas ambientais para o planeta, esta nossa sofrida casa, vê-se que o tal "emendão" é composto de propostas que têm como objetivo, da forma mais descarada, retirar o status de preservação de áreas verdes, desmatar setores urbanos frágeis e acrescidos no período de discussão da minuta do plano e construir onde não se deve. A face emblemática dessa articulação é o centro logístico do aeroporto de Fortaleza, cuja construção custará a supressão da Floresta do Cocorote. É claro que um processo de produção de possibilidades de uso e ocupação da terra urbana, com a definição de indicadores urbanísticos e zoneamentos, envolve tensão e disputa. Contudo, como fica o interesse da coletividade? Vai para a lata de lixo?

Fala-se que quem mexe os cordéis nesse teatro de marionetes é o mercado imobiliário e a construção civil, segmentos que desejam que a Cidade seja somente uma folha de papel em branco, a-histórica, sem predicados ambientais e à mercê dos seus desígnios. Mecanismos criados na base da sorrelfa e à socapa, tais como a tal "transição flexível", viabilizam a construção de obras que seriam simplesmente proibidas se fosse mantida a redação original do PDP. Ao ver de muitos, o "emendão" elimina as Zonas de Preservação Ambiental (ZPAs), as Zonas de Patrimônio Cultural (ZPCs), as Áreas de Relevante Interesse Cultural (ARICs) e as Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), dando banana para a garantia da justiça socioambiental e a reverência à memória e à natureza.

Parece que mais uma vez, por motivo da ação dos podres poderes, perderemos uma excelente oportunidade de elaborar a lei maior da Cidade de forma equilibrada e justa, na qual prevaleça a vontade da maioria, principalmente a das faixas mais humildes da população, e não somente os projetos de quem quer investir e ganhar dinheiro no espaço urbano. Como dizia a minha saudosa mãezinha, caixão de defunto não tem gaveta. Até quando ficaremos reféns da ganância e do arbítrio? Fortaleza, que no ano vindouro, completa 300 anos de vida, caminha celeremente para os 3 milhões de habitantes sem contar com uma infraestrutura urbana que atenda às suas demandas. Nossa Capital não é apenas o Meireles e a Aldeota. Enquanto isso, ela sussurra: "Decifra-me ou devoro-te...".

 

Foto do Romeu Duarte

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