Rubens Rodrigues é jornalista, editor de Cidades do O POVO. Nesta coluna, trata de assuntos ligados a raça, diversidade e direitos humanos
Rubens Rodrigues é jornalista, editor de Cidades do O POVO. Nesta coluna, trata de assuntos ligados a raça, diversidade e direitos humanos
O trabalho infantil é uma violação grave dos direitos humanos. No entanto, o Brasil registrou quase 25 mil acidentes de trabalho com crianças e adolescentes e 466 mortes no período de 10 anos. Isso representa média de 2.500 acidentes e 47 mortes por ano.
Dentre as crianças de 5 a 13 anos mortas em acidentes de trabalho, 57,2% eram pretas, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Esse é o resultado do estudo "Perfil dos acidentes de trabalho com crianças e adolescentes no Brasil, de 2011 a 2020", publicado na Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, nessa sexta-feira, 13.
Além disso, estimativas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mostram que mais de 1,8 milhão (4,6%) do público com idade entre 5 e 17 anos estava em situação de trabalho infantil no País em 2019.
A pesquisadora Élida Hennington, professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), afirma que a análise é "prejudicada pelo significativo percentual de dados ignorados ou em branco". Contudo, ela destaca a importância de "evidenciar que existe um recorte racial também em relação à ocorrência de acidentes de trabalho, principalmente nas crianças menores".
"Há crianças morrendo em decorrência do trabalho. Isso é gravíssimo, inaceitável. Ainda há muito a fazer, a começar pela nossa indignação e luta diária em todos os setores — em políticas de governo, com o investimento e desenvolvimento de pesquisas, em ações intersetoriais, globais, regionais e comunitárias", afirma a pesquisadora titular do estudo.
OP: O estudo mostra que crianças pretas e pardas, entre 5 e 13 anos, estão mais expostas ao trabalho infantil. O que esse recorte racial evidencia?
Élida Hennington: Segundo o Sinan, nessa faixa etária (5 a 13 anos) havia o maior percentual de crianças pretas ou pardas (57,2%) que sofreram acidente de trabalho (AT), assim como na faixa de 14 a 15 anos (42,9%). Somente na faixa de 16 a 17 anos de idade foi encontrado maior percentual de pessoas brancas acidentadas (45,3%). Embora a análise dessa variável seja prejudicada pelo significativo percentual de dados ignorados ou em branco, julgamos importante evidenciar que existe um recorte racial também em relação à ocorrência de acidentes de trabalho, principalmente nas crianças menores.
O próprio IBGE já demonstrou que, entre crianças e adolescentes de 5 a 17 anos, o percentual de pessoas de cor branca em situação de trabalho infantil era inferior (32,8%) à estimativa da população branca desse grupo etário (38,4%); fato que não foi observado nos indivíduos de cor preta ou parda, havendo maior concentração de crianças e adolescentes da raça negra (pretos e pardos) em situação de trabalho infantil (66,1%), superior à proporção de pretos ou pardos na população (60,8%).
OP: Conforme as variáveis do Sinan, a porcentagem de crianças pretas ou pardas (57,2%) é praticamente o dobro das crianças brancas (29,7%) entre 5 e 13 anos. Já nas variáveis do SIM, a porcentagem de crianças pretas e pardas chega a 63,5%, enquanto a de crianças brancas é de 33,8%. Como você analisa esses dados?
Élida Hennington: Esses dados apontam que os acidentes de trabalho nessa faixa etária (5 a 13 anos) atingem mais crianças pardas e pretas e, no caso das mortes por AT, esse percentual, comparando crianças negras e brancas, é ainda maior. Eu considero essa uma das mais importantes evidências do estudo. Sabe-se que a maioria das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são negras, o que as expõem ao maior risco de ocorrência de acidentes e de óbitos por AT. Em relação aos sistemas de informação, os dados de mortalidade costumam ser mais fidedignos.
OP: Na faixa etária em que o trabalho é totalmente proibido houve um aumento de 3,8% em acidentes registrados no período analisado. A que você atribui esse crescimento?
Élida Hennington: Eu creio que esse aumento pode ser devido ao fato de que quanto menor a criança, maior o risco de acidentes em geral. Quanto menor a criança, menos força, cuidado e menos destreza em comparação a uma criança mais velha ou adolescente no manuseio de ferramentas, instrumentos de trabalho, no uso de equipamentos ou no transporte. Além disso, muitas crianças pequenas nas grandes cidades estão expostas ao ambiente de rua, aos riscos de acidentes de trânsito e à violência urbana.
OP: Você acredita que ainda há muita subnotificação desse número?
Élida Hennington: Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso. Nosso estudo apresenta uma pequena amostra dessa triste realidade vivenciada pelos trabalhadores brasileiros. Há vários estudos que evidenciaram a grande subnotificação de acidentes de trabalho no País, apesar dos números oficiais já serem estarrecedores.
No caso de crianças e adolescentes, o registro de AT é um desafio ainda maior pois o trabalho infantil é muitas vezes “naturalizado” como nas áreas rurais e muitas crianças trabalhadoras são invisibilizadas, assumindo afazeres domésticos e cuidado de pessoas, trabalhando como vendedores ambulantes e expostos à violência das ruas, quando não estão envolvidas nas piores formas de trabalho infantil, como o tráfico de drogas e a exploração sexual.
Além disso, há uma grande proporção de informalidade nesse grupo etário e os nossos serviços de saúde e centros de referência não possuem estrutura, não priorizam ou as equipes ainda não estão preparadas para fazer a vigilância em saúde do trabalhador cujo processo se inicia com a identificação e notificação desses acidentes.
OP: Conforme a Organização Internacional do Trabalho e a Unicef, 72,1% das crianças e adolescentes trabalham em ambiente familiar e não são remunerados. Qual a dificuldade de políticas públicas, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), alcançarem esse contexto?
Élida Hennington: O Peti, criado nos anos 1990 e posteriormente ampliado, tem sido uma política muito importante na luta pela erradicação do trabalho infantil e proteção do trabalhador no nosso país. Mas eu creio que para o sucesso dessas políticas é preciso de um esforço e uma atuação conjunta de vários setores da sociedade, governos e sociedade civil. A começar por políticas de erradicação da fome e combate à pobreza, emprego e renda mínima para as famílias, políticas de educação e de saúde integral para crianças e adolescentes, esporte, cultura e lazer. Escolas, Conselhos Tutelares e Ministério Público têm papel fundamental nesse processo de defesa e proteção. Crianças e adolescentes têm que ser cuidados e essa tarefa e responsabilidade é de toda a sociedade. Os povos originários têm muito a nos ensinar em relação a isso.
OP: Em 2019, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do total de 1,8 milhão, quase metade das crianças em situação de trabalho infantil estavam nas piores formas de trabalho, a exemplo da exploração sexual, do tráfico de drogas e da escravidão. As crianças são alvos mais fáceis desses tipos de trabalho?
Élida Hennington: Sem dúvida. A pobreza, o racismo, a violência são marcas da sociedade brasileira e, nesse contexto, as crianças e adolescentes são os mais frágeis. Precisamos lutar contra essa grave violação dos direitos humanos que é o trabalho infantil. Como eu disse anteriormente, nossas crianças e adolescentes precisam ser cuidados. Eles são o nosso futuro e a nossa esperança de dias melhores, de uma sociedade mais justa. Não é aceitável que nossos filhos possam frequentar a escola, brincar e se divertir, e desenvolver todo seu potencial enquanto outras crianças, principalmente negras e pobres, não têm direitos nem oportunidades e vivem nos grotões ou nas periferias das grandes cidades, moram em habitações precárias, são obrigadas a trabalhar desde crianças porque passam fome e outras necessidades, correm riscos nas ruas. Precisamos nos indignar a respeito disso.
OP: O estado de São Paulo notificou 47% dos casos de acidentes de trabalho no período analisado, conforme a base do Sinan. A pesquisa cita ainda outros estados do Sul e do Sudeste. Como o Nordeste está nesse cenário? E o Ceará, mais especificamente?
Élida Hennington: Nesse estudo, a baixa notificação por parte dos estados do Norte e Nordeste chamaram atenção, porém o Rio de Janeiro, por exemplo, terceiro estado mais populoso, pujante economicamente e densamente povoado, notifica muito pouco. Não levantamos dados específicos sobre o Ceará, mas de modo geral, a notificação de AT e a vigilância em saúde do trabalhador precisa avançar muito no País.
Nós possuímos sistemas nacionais de informação em saúde importantes e consolidados. Precisamos aprimorar sempre, mas já possuímos expertise para trabalhar os dados. Estudos descritivos podem e devem ser desenvolvidos nos serviços – eles são muito relevantes para diagnósticos de situações de saúde e para o planejamento de ações. Precisamos investir ainda em capacitação e sensibilização sobre a importância da notificação de casos e do correto e completo preenchimento dos dados para um diagnóstico fidedigno que propicie intervenções efetivas.
OP: A série temporal mostra um pico de acidentes de trabalho em 2013 e uma queda considerável na segunda metade da década. A que se deve isso?
Élida Hennington: Não sabemos ao certo a razão disso. Precisamos aprofundar e realizar novos estudos para descobrir, mas comumente quando se observa aumento de AT, pode ser porque houve melhora na fiscalização dos ambientes de trabalho e ou piora das condições de trabalho ou ocorreu alguma mudança que afetou o sistema de notificação e registro. Parece que nesse ano, houve um aumento significativo de óbitos por AT em geral. Seria preciso investigar.
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