Rubens Rodrigues é jornalista, editor de Cidades do O POVO. Nesta coluna, trata de assuntos ligados a raça, diversidade e direitos humanos
Rubens Rodrigues é jornalista, editor de Cidades do O POVO. Nesta coluna, trata de assuntos ligados a raça, diversidade e direitos humanos
É da Serra do Evaristo, em Baturité, cidade quase 100 km distante de Fortaleza, que sai a professora Joyce Ramos. Militante de causas sociais desde a adolescência, principalmente da questão da moradia, a integrante do Movimento Brasil Popular tornou-se a primeira mulher quilombola a assumir o cargo de ouvidora externa da Defensoria Pública do Ceará (DPCE).
Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Joyce tem uma trajetória de luta no Movimento dos Sem Terra (MST), com atuação na defesa dos direitos dos assentados e assentadas da reforma agrária.
Em setembro de 2023, ela tomou posse do cargo na Defensoria, tendo recebido 55 votos das 84 entidades que participaram do processo eleitoral que foi o mais concorrido da história da entidade. A ouvidoria, de caráter externo, é o único órgão na estrutura da instituição com esse olhar. É também o único setor da entidade com incidência direta dos movimentos sociais, incluindo a esfera jurídica no Estado.
Aos 41 anos, Joyce é a quinta pessoa negra consecutiva a assumir o cargo criado em 2010, a quarta mulher e a primeira remanescente de comunidade quilombola no Brasil a ocupar esse espaço. Nesta primeira parte da entrevista à coluna, Joyce relembra a infância na comunidade e fala como foi ter sido forjada nos movimentos sociais e na luta pelos direitos dos mais desassistidos.
OP - Como foi a sua infância?
Joyce Ramos - Eu sou de uma comunidade que recentemente foi reconhecida como uma comunidade remanescente de quilombo. Até então, durante toda a infância e juventude, nós não tínhamos essa informação. Mas já era uma comunidade historicamente muito envolvida com pautas sociais. Desde criança, sempre me envolvi em atividades da Igreja Católica. Na escola também sempre fui muito envolvida com projetos. A minha família é grande, tanto por parte de pai como por parte de mãe, tenho bastante tios e tias. Tive uma infância não muito fácil, pobre, fui criança de uma comunidade muito carente de serviços. E a minha família, como era muito pobre, eu não tive muito essa coisa de curtir a infância. A minha infância já foi muito na linha do trabalho, da responsabilidade. Muito cedo aprendi a ter esse senso de responsabilidade, de cuidar de casa, dos irmãos, mas sempre voltada para esses projetos (igreja e escola).
OP - Você viveu lá até quando?
Joyce Ramos - Até... 1994. Até uns 12 anos de idade eu fiquei nessa comunidade.
OP - Como é que foi esse caminho saindo da comunidade até aqui?
Joyce Ramos - Eu saí da comunidade aos 12 anos. A minha mãe foi contemplada num projeto social de moradia na cidade de Baturité, então baseado nisso a gente foi morar... Até porque na comunidade era uma vida bastante precária, então a minha mãe pode finalmente sonhar com uma casa própria. A gente se mudou pra cidade e, nessa comunidade, num bairro da cidade de Baturité, logo quando a gente chegou eu continuei envolvida em projetos (na igreja).
Nesse processo, duas tias minhas vêm para o MST, elas fizeram parte da fundação do MST no Ceará por volta dos anos 1990. E muito através delas comecei a ter essa visão de mundo mais ampla, digamos assim. Eu já era envolvida nesses pequenos projetos e ao acompanhá-las comecei a pensar: “Ora, eu quero ir para o Movimento Sem Terra também”. E antes mesmo de completar meus 15 anos de idade, pedi para uma delas me levar para o encontro estadual do MST que ia ter aqui em Fortaleza. Foi nesse encontro que eu me encantei pelo movimento e a partir daquele movimento resolvi então fazer parte da militância do MST. Aos poucos fui me envolvendo. Assim comecei a me envolver em atividades estaduais. Eu fui morar em Canindé, a princípio, como uma tarefa do MST. Passei um ano em Canindé no setor de Educação do MST e a partir disso fui me envolvendo em outros setores do MST. Então esse processo foi muito por influência das minhas tias.
OP - Como foi a sua formação fora do Ceará?
Joyce Ramos - Cursei História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). A minha graduação foi através do MST, pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Nos anos 2000, com o governo Lula. Foi a primeira turma de historiadores e historiadoras da terra em parceria com a UFPB. O MST então formou essa turma de 60 estudantes dos mais diversos estados em que o MST atua. E eu fui uma das militantes aqui do Cará contemplada com a graduação. O curso tinha uma pedagogia diferenciada, com tempo-escola (período que ficávamos na universidade) e tempo-comunidade. O tempo-escola era a oportunidade que nós tínhamos de voltar para o seu estado, continuar as atividades militantes, mas também fazendo atividades que os professores demandavam. E assim foi durante quatro anos. Finalizei o curso em 2008.
Logo depois, eu engajei no Projovem Urbano, que era um programa federal, mas que a Prefeitura de Fortaleza tinha implementado também. E assim que terminei o curso de História fiz a seleção, passei e fui dar aula para jovens e adultos desse programa nas áreas periféricas de Fortaleza.
OP - Você fala muito de políticas públicas. Qual é a importância disso na sua vida e na sua formação?
Joyce Ramos - Tem uma relevância absurda na minha vida porque eu sou fruto das políticas públicas. Tanto da moradia, desde quando a minha mãe é contemplada com programa de moradia, até mesmo através da conclusão do ensino médio e do ensino superior. Eu não contei, mas antes de fazer minha graduação, eu fiz o magistério que também foi numa turma contemplada pelo MST. Também na Paraíba. Engraçado porque foram turmas pioneiras. O curso de magistério também foi uma primeira turma que o MST abriu na Paraíba, em parceria com a Federal, no Colégio Vidal de Negreiros, um colégio agrícola. Então eu já tinha tido também essa experiência no ensino médio, na cidade de Bananeiras, na Paraíba.
Eu sou realmente o resultado de políticas públicas que deram certo. Sobretudo vindo de família humilde, de situação de precariedade social muito grande. Naquela época de meados dos anos 90 a situação do País não era das melhores por conta do contexto político que nós vivíamos. Então sou fruto das políticas públicas e a partir delas tomei consciência de classe, da necessidade de que a luta social deveria ser feita, porém buscando essas conquistas. Fazendo com que a luta se transformasse também em política pública.
OP - Quando a gente fala em comunidade, seja a favela, seja a comunidade remanescente de quilombo, tem sempre um fator racial, etnico preponderante. Em que momento você se deu conta dessa noção racial?
Joyce Ramos - Foi muito em virtude dos cursos de formação que fui adquirindo durante a militância, especialmente no Movimento Sem Terra. Eu não cheguei a militar exclusivamente em movimento negro, mas o movimento social foi me forjando. Tomando consciência não só das questões mais ligadas à luta pela terra, mas essa questão da luta e defesa dos direitos humanos como um todo. Foi graças a essa trajetória dentro do MST que fui reconhecendo a minha identidade. Porque, como eu falei, até então a minha comunidade não tinha recebido o reconhecimento como comunidade quilombola. Até então era a comunidade Serra do Evaristo em Baturité. Depois, com a minha saída de lá, com toda a organização da comunidade é que veio o reconhecimento.
Então foi muito graças à luta que eu tomei consciência não só de classe, mas também racial e de gênero. É no decorrer da luta que eu vou me enxergando como uma mulher feminista, preta, de comunidade.
OP - Como foi a sua vida profissional?
Joyce Ramos - A minha formação é em Licenciatura Plena em História. Logo quando me formei fui buscar ser professora. Fui selecionada no Projovem Urbano. Finalizado o Projovem, continuei a dar aula no ensino médio das escolas estaduais. Passei mais de seis anos ensinando em escolas do Estado. Tanto em Fortaleza como no Interior. Em 2015 fui chamada para dar aula em escolas do campo ligadas ao MST, com um método pedagógico diferente. Ensinando os conteúdos do ensino médio, só que dentro da perspectiva da realidade desses educandos e educandas.
OP - Essa metodologia de ensinar a partir de uma perspectiva específica poderia ser pensado em outros lugares?
Joyce Ramos -Sim, porque é uma forma das pessoas se enxergarem dentro de cada processo histórico. De se reconhecerem. É um método que hoje outros movimentos têm experimentado, mas é uma pedagogia muito vinculada ao MST. Muitas vezes a evasão escolar parte muito dessa ideia de que os alunos não se enxergam ali. Ocorre assim: quando eles vão estudar a questão da produção, o MST vincula a matemática ou a química aos meios produtivos que esses alunos estão vivenciando. Sempre nesse método da práxis. A ideia é que ao finalizar o ensino básico, o estudante possa aplicar esses conhecimentos ao trabalho ou à militância, para quem segue esse caminho.
OP - Levando em consideração a sua história, o que significa ocupar esse lugar hoje na Defensoria?
Joyce Ramos - Nossa, tem um significado grandioso porque eu já tenho mais de 20 anos de luta social, militante dos direitos humanos, então eu cheguei aqui graças à essa trajetória minha em defesa da luta das mulheres, em defesa da pauta da moradia, em defesa dos serviços básicos que até então a periferia tanto necessita. Hoje eu sou moradora da periferia aqui em Fortaleza e passei a ter uma militância muito forte também a partir desses serviços, como a luta por emprego, trabalho e renda, a luta por saneamento básico. Então, foi graças a essa trajetória de luta, de militância na perspectiva da garantia dos direitos humanos que eu… Eu não vim, eu fui chamada. Eu fui convocada a estar nesse espaço. Até então, a ouvidoria da Defensoria Pública não estava no meu horizonte. Foi um processo. As pessoas me trouxeram até aqui, os movimentos sociais me deram essa legitimidade. De dizer que o meu perfil, a minha luta, a minha história de vida são importantes para que eu esteja nesse espaço de legitimidade das lutas em defesa dos direitos humanos. Então estar aqui hoje é muito mais uma retribuição para com essas lutas e movimentos. Eu estou aqui como uma porta-voz desses sujeitos coletivos mas também como pessoa que vem das comunidades quilombola e periférica.
OP - E qual é o sentimento desse reconhecimento?
Joyce Ramos - Primeiro dizer da importância de ter uma instituição pública como uma retaguarda institucional de garantia de acesso à justiça. Então, a gente luta, não para ser uma luta sofrida, mas para obter conquistas. Fazer com que cada vez mais o povo brasileiro, aos que têm negados historicamente seus direitos possam através da luta ter a sua condição de vida melhorada. É um sentimento de que a gente tá no lugar certo, ocupando um espaço que é da sociedade, que deve ser cada vez mais ocupado pela sociedade civil organizada e que esse espaço possa fortalecer as lutas do ponto de vista institucional. É necessário uma combinação de forças. Eu venho pra cá para me somar no intuito de fazer com que essas lutas possam ter garantias de direitos, que efetivamente elas enxerguem finalmente a instituição como espaço delas e que elas possam esperançar e ter a oportunidade de ter os direitos
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