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História e democracia A história de uma canção. Parte 2
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Historiador, pesquisador, escritor, editor do O POVO.Doc e ex-editor de Opinião do O POVO

História e democracia A história de uma canção. Parte 2

Nesta parte do ensaio, o historiador Sérgio Falcão contextualiza o impacto da censura na produção artística musical brasileira e narra a história da canção "Cálice", de Chico Buarque, alcançada pela ditadura militar em vigor no Brasil (1964-1985)
Tipo Análise

Para sistematizar a vigilância e suspensão dos conteúdos que desagradassem a ideologia dominante do governo militar foi criada a Divisão de Censura de Diversões Públicas, subordinada a Polícia Federal e, consequentemente, Ministério da Justiça.

Embora não se possa precisar o número exato de obras censuradas estima-se que foram milhares de músicas, peças teatrais, livros, programas de rádio e TV, jornais, revistas, propagandas que tiveram que ser reescritos, refeitos ou definitivamente cancelados porque “afrontavam” a moral da sociedade brasileira ou agrediam direta ou indiretamente o regime imposto. A sede do órgão funcionava em Brasília, mas, em muitos casos censores tinham assento obrigatório nas redações da imprensa, validando cada matéria jornalística que poderia “ameaçar” o stablistment do governo. A partir do AI-5 o jornal "O Estado de S. Paulo" passa a publicar trechos de "Os Lusíadas", de Camões, nas matérias censuradas. Outro exemplo de denunciar a censura praticada nos órgãos de imprensa vê-se no "Jornal da Tarde" (SP) que publica receitas de culinária nos textos censurados.

No cenário musical Chico Buarque foi um dos mais visados pela censura, constantemente tinha suas canções proibidas pelos censores. 

Era prática das gravadoras contratarem advogados para entrar com recursos nas liberações das músicas, mesmo assim, às vezes, Chico comparecia em Brasília na tentativa de dialogar com os censores. A animosidade da censura o fazia ter que alterar trechos das músicas para conseguir a liberação oficial.

Cansado de ter suas composições constantemente censuradas ou tendo que ajustar palavras, títulos ou trechos Chico resolve criar um pseudônimo, Julinho da Adelaide, para assinar suas músicas e ludibriar a censura. Através de Julinho da Adelaide as canções "Acorda Amor" (1974), "Jorge Maravilha" (1974) e "Milagre Brasileiro" (1975) foram liberadas sem qualquer restrição.

Em setembro de 1974 é publicado no jornal "Última Hora" entrevista de Mário Prata com Julinho da Adelaide.  A entrevista foi realizada na casa dos pais de Chico Buarque, Sérgio e Maria Amélia Buarque de Holanda, na companhia da família. Julinho era o antônimo de Chico, folgado, falastrão, falante e fanfarrão, “incorporando” o malandro Chico traz uma afiada crítica à sociedade.

O "Jornal do Brasil", em 1975, desmascara a farsa revelando o artifício de Chico Buarque como o verdadeiro autor das músicas. Humilhada, a censura passa a exigir RG e CPF dos autores de todas as músicas.

Pela necessidade e limitação imposta pela exclusão da liberdade de expressão nos governos militares um dos recursos da Música Popular Brasileira (MPB) para tentar driblar a censura foi a adoção de metáforas nas letras. Era um exercício de sorte, convencimento e não entendimento das composições pelos censores. Alguns registros históricos preservados (a grande maioria perdeu-se pelo descaso tão marcadamente brasileiro com sua própria História) trazem o relato da música "Cálice", composição de Chico Buarque e Gilberto Gil.

Em 1973, Chico e Gil eram contratados da gravadora Phonogram e receberam a demanda de compor uma música a ser apresentada em maio no show Phono 73, no Palácio das Convenções do Anhembi, São Paulo. Na Semana Santa, Gil rascunha versos iniciais de Cálice e reúne-se na cobertura de Chico na lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro. O ambiente e o encontro passam a compor a letra da música como, “ver emergir o monstro da lagoa” (o monstro da ditadura emergir da lagoa Rodrigo de Freitas) e “como beber dessa bebida amarga” (Chico gostava da amarga bebida italiana Fernet que oferecia aos amigos).

Eugenio Brauner traz na Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o texto Julinho da Adelaide, um pseudônimo que driblou a Censura, a fala de Marina Brum Duarte, uma das censoras de Chico Buarque nos anos 1970, possivelmente responsável pela proibição de Cálice. Eis a transcrição de um trecho: “Pensar que eu não ia deduzir que aquele cálice não era uma taça, e sim uma referência ao silêncio... francamente. O que ele achou? Que eu era trouxa?” Dona Marina – hoje com 83 anos – fala amargamente daqueles tempos de censora: “Fui uma rameira do sistema. Eu não condeno quem age em má situação financeira. Eu me vendi por dinheiro”. Ela lembra ainda que “a censura foi eivada de coisas horrorosas” e que todas as músicas que eram assinadas por Chico Buarque eram duplamente analisadas, dissecadas palavra por palavra”. 

"Cálice" tornou-se um hino de resistência à ditadura militar, uma das várias canções de protesto compostas no período, seus versos descortinam o universo tóxico que o Brasil encontrava-se mergulhado. Merece ser lida, ouvida e sentida como reflexão e discussão do que os brasileiros estavam impiedosamente submetidos.

Valioso depoimento de Gilberto Gil temos nesse vídeo sobre o processo de criação e contexto que a canção foi escrita.

Censurada, "Cálice" não pode sequer ser cantada no show Phono 73, a gravadora cortou o som dos microfones de Gil e Chico como pode ser visto neste vídeo

 

Tal censura fez Chico romper com a gravadora, liberada pela censura, em 1978, "Cálice" fez parte do disco Chico Buarque cantada com Milton Nascimento (Gilberto Gil estava vinculado a outra gravadora). Assista ao vídeo: 



 

O silêncio imposto que não tem fim

 

A censura terminou oficialmente com a promulgação da Constituição de 1988, mas, é preciso estar atento pois o retrocesso espreita com desinformação, radicalismo, fake news, imposições, omissões e uma imensa desigualdade social brasileira que impõe aos desfavorecidos a mesma opressão, tortura e assassinato da ditadura militar. Hoje, como ontem, no Brasil, a ditadura é do mais forte, corrupto e poderoso. Quanto ao que será o amanhã depende da mobilização da sociedade civil organizada, democrática e unida.

Criolo, compositor e cantor, fez uma releitura de "Cálice" a partir dos problemas sociais do Brasil contemporâneo. Acesse aqui  o vídeo com a interpretação de Criolo seguido da referência que Chico Buarque faz da adaptação.

Vai passar


Há uma nuvem de retrocessos e autoritarismo no Brasil atual, discursos e práticas do governo federal (democraticamente eleito, lembremos) tentam minar os avanços da democracia reconstruída a partir das eleições diretas de 1985. Há toscos apoiadores que bravejam alucinados à volta da ditadura militar e do AI-5, mais que desinformados e perigosos importante questionar a quem e ao que servem.

Eis que temos o governo federal resgatando a Lei de Segurança Nacional, criada no período militar, na tentativa de calar os críticos do presidente Jair Bolsonaro. Entenda-se que críticos aplica-se a todos os brasileiros que não sejam “cidadãos do bem”. Tal pretensão é inaceitável e carrega uma onipotência que a democracia jamais deveria permitir sua existência e sim apoiar a plena liberdade de expressão.

Cabe as instituições, poderes e representantes democráticos sepultar de vez esse resquício da ditadura militar e qualquer forma de censura que toda e qualquer esfera do poder público tente coibir a liberdade de expressão. Censura no Brasil nunca mais!

 

Foto do Sérgio Falcão

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