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Tipos populares, quando a cidade se humaniza
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Historiador, pesquisador, escritor, editor do O POVO.Doc e ex-editor de Opinião do O POVO

Tipos populares, quando a cidade se humaniza

O Ceará destaca-se por sua humanidade, porém, carecemos melhor refletir como acolher a diversidade. Passado e presente são permeados por diferentes tipos populares que simbolizam nossas diferenças
Tipo Análise
FORTALEZA, CE, BRASIL,  22-01-2014: Entrevista com poeta Mário Gomes, andarilho que tem oito livros publicados, na Praça do Ferreira. Caderno DOM. (Foto: Deivyson Teixeira/O POVO) *** Local Caption *** Publicada em 17/03/2015 - VA 08 (Foto: Deivyson Teixeira/O POVO)
Foto: Deivyson Teixeira/O POVO FORTALEZA, CE, BRASIL, 22-01-2014: Entrevista com poeta Mário Gomes, andarilho que tem oito livros publicados, na Praça do Ferreira. Caderno DOM. (Foto: Deivyson Teixeira/O POVO) *** Local Caption *** Publicada em 17/03/2015 - VA 08

A história das cidades é um emaranhado de vivências e relações nas esferas econômica, social, cultural e urbanística que extrapolam os limites da história oficial. Se descortinarmos os horizontes da demografia urbana que busca assemelhar-se a uma tradução da realidade e desconstrói tal imagem pasteurizada do “status quo”, uma cidade é, também, constituída pelo que é renegado, risível, diferente, incompreendido, “desgraçado”, especial, poético.

A internet fornece como primeiro resultado de significado para tipos populares a seguinte explicação: “Os tipos populares, do ponto de vista da cultura popular tradicional ou do folclore, são pessoas populares na sociedade que as diferenciam das demais por suas características próprias e incomuns. São, portanto, pessoas folclóricas.”

O historiador Sebastião Rogério Ponte, em “Fortaleza Belle Époque: reformas urbanas e controle social (1860-1930)”, compreende assim: “A emergência desse fenômeno social em Fortaleza (e, certamente, em outras cidades), guarda estreita relação com o processo de transformações urbanas que alteram significativamente a vida e o ritmo da Capital entre o final do século passado e o começo deste. Os tipos populares, indivíduos empobrecidos e enlouquecidos, faziam parte daquele contingente de miseráveis produzido ou intensificado pela velocidade das relações capitalistas em desenvolvimento no país. Suas esquisitices, manias ou distúrbios psíquicos de alguma forma foram provocadas pelo impacto das transformações frenéticas das ruas, no trabalho, nas casas e na vida das pessoas.”.

Tais personagens sempre fizeram parte do cenário das grandes cidades, em especial nos bairros menos elitizados e, ainda, com a mínima possibilidade de interação das pessoas que habitam cada vez mais um mundo distante, digital e individualizado. Nas cidades do interior, talvez, essa percepção e interação com o diferente faça-se mais presente. Real ou utópica, tem-se a percepção que a vida interiorana possui outro tempo e valores. Será? Toda narrativa depende da profundidade, intenção, des(construção) e perspectiva.

Se ampliarmos o olhar no território brasileiro (acredito que é uma realidade mundial, por ser humana), a presença dos tipos populares ontem e hoje nos mais diversos lugares já são percebidos e registrados, para maior aprofundamento recomendo a leitura do livro “A alma encantadora das ruas”, publicado em 1908, por João do Rio.

Quanto a percepção da sociedade sobre tais seres humanos, recorro ao escritor Otacílio de Azevedo, que apresenta em “Fortaleza descalça”, talvez, nossa face desumana de incompreensão: “Sempre que assistia ao revoltante espetáculo me entristecia e me apiedava da indefesa vítima de uma sociedade ignorante e desumana, que ria das desventuras alheias, fazendo de suas dores e desditas um motivo de distração, prazer e galhofa”.

A historiografia cearense e a imprensa consolidaram “destaques” e/ou enquadraram neste grupo alguns personagens urbanos dos séculos XIX e XX, são: Casaca do Urubu, De Rancho, Capitão Pirarucu, Tostão, Fabrício, Oi, tá vendo?, Chico Coruja, Ramos Cotoco, Bembém da Garapeira, Chagas dos Carneiros, José de Sales, Manezinho do Bispo, Raimundo Varão, Bode Ioiô, Pitombeta, Tertuliano, Tostão. No grupo feminino faz parte: Mimosa, Noiva do Tempo, Ferrugem, Chica, Pinote, Mucura.

De tantos personagens e divertidíssimas histórias vale pequeno relato de Bembém da Garapeira. Possuidor de quiosque, próximo ao antigo Mercado Público, vivia da venda de garapa de cana de açúcar. Na afrancesada Fortaleza do começo do século XX, realizou o sonho de conhecer a França após suadas economias. Ao regressar, lamentava não ter ido antes à fim de assistir à decapitação de Maria Antonieta. Contava que no registro do hotel francês pela língua ser outra assinou “Bien-Bien” e embaixo “Garapière”, no Ceará, passou a imprimir cartão com nova assinatura a partir do conselho de “amigo”. Considerava a terra francesa adiantada, afinal, todo mundo falava francês, até mesmo os carregadores chapeados, as mulheres do povo e as crianças.

Falecido em 2015, aos 67 anos, o poeta Mário Gomes pode representar a derradeira grande representação dos tipos populares nesta Fortaleza do século XXI. Aposentado por invalidez no começo da vida adulta após internações psiquiátricas, o “poeta andarilho”, apesar de ter morada no bairro Bonsucesso, fazia da Praça do Ferreira seu principal habitat. “Poeta de rua, vivia no limiar entre loucura e sanidade, sobriedade e ebriedade. Pelas mãos dos amigos, publicou oito livros de poesia. Foi premiado por seus versos antropofágicos e obscenos.” (André Bloc, O POVO, 02/01/2015).

Dentre seus versos, destaco trecho que revela sua mágica compreensão: “Minha casa é meu corpo, meu carro também. Moro dentro dos meus sapatos, ora! Meu nome é Pensamento!”.

Na música “Vaca profana”, Caetano Veloso sintetiza no verso “de perto, ninguém é normal” o que virou sabedoria popular. Se há carisma ou aversão a tais seres humanos que atraíram popularidade, que sejamos verdadeiramente humanos quando os encontrarmos.

Foto do Sérgio Falcão

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