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Benzedeiras: o misticismo fantástico brasileiro
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Historiador, pesquisador, escritor, editor do O POVO.Doc e ex-editor de Opinião do O POVO

Benzedeiras: o misticismo fantástico brasileiro

As benzedeiras integram a cultura brasileira desde o princípio formativo colonial, amparadas nas tradições orais fazem parte do imaginário afetivo de parcela da população sob a ameaça, na contemporaneidade, de esquecimento. Detentoras da "medicina popular", trafegam o universo da fé e manejo das ervas em prol dos enfermos, do corpo e da alma
Tipo Análise
Benzedeiras, expressão do patrimônio imaterial brasileiro (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Benzedeiras, expressão do patrimônio imaterial brasileiro

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Tão antiga quanto a existência humana na Terra, pratica-se o misticismo nas mais diferentes formas. As crendices procuravam a aceitação ou compreensão do inexplicável, o auxílio e urgência que só o sobrenatural pudesse suprir, a cura dos desconhecidos males do corpo e da alma. Ao longo da História, nas diversas civilizações, foi construído e transformado no decorrer da evolução humana múltiplos saberes consolidados socialmente e amparados na experiência prática cotidiana, vide as ervas e secreções animais, dentre outras, aplicados para os males em vários lugares do planeta.

Os conhecimentos herdados do convívio com a natureza encontram no misticismo os representantes detentores dos saberes que passaram a ser referenciais socialmente na decodificação do sobrenatural, domínio e aplicação das práticas curativas das doenças e destinos.

A consolidação das religiões dominantes, urbanidade das civilizações e evolução das ciências foram, gradativamente, restringindo as práticas místicas às regiões mais isoladas e populares. Vale uma referência à Idade Média, período de domínio absoluto da Igreja Católica e perseguição às feiticeiras, cuja práxis em essência remontava aos primórdios da civilização.

O Brasil entra na rota do misticismo pelas crenças e saberes dos povos originários, a população indígena é dotada da conexão direta com a natureza, uso e respeito dos ensinamentos desse convívio desde sempre. A colonização trouxe as crenças da população negra (origem africana) e branca (origem europeia) que, devido ao modelo de convivência, domínio do branco e submissão do índio e negro ao longo dos séculos, aliado a continentalidade do território brasileiro, desassistência do Estado, exploração das relações de trabalho e sociais, e, isolamento das comunidades contribuiu fortemente para a configuração do sincretismo religioso no Brasil.

 

"A oralidade e gratuidade dos serviços são marcas históricas da descoberta, transmissão e exercício do dom das benzedeiras, exercido principalmente pelas mulheres"

 

Fruto do sincretismo religioso brasileiro, somado à opressão do sistema religioso dominante (leia-se catolicismo) sobre as demais crenças e povos, desigualdade social e populações desamparadas, o suporte espiritual e sanitário vinha dos curandeiros, pajés, parteiras, rezadeiras, benzedeiras com suas variações e singularidades presentes em cada região do País.

As crendices populares foram se transformando a medida do crescimento civilizatório brasileiro, restringindo-se cada vez mais ao interior ao longo do tempo, e, nas cidades, perpetuando-se nas pessoas de mais idade que mantêm sua prática, como o dom de servir ao próximo, apesar das intolerâncias religiosas e descrenças espirituais características da contemporaneidade.

A oralidade e gratuidade dos serviços são marcas históricas da descoberta, transmissão e exercício do dom das benzedeiras, exercido principalmente pelas mulheres, porém, nas pesquisas da coluna percebe-se uma alternativa na formação das novas gerações através de cursos online ou presenciais e apropriação da ocupação do ancestral espaço por ditos terapeutas num processo de adaptação ou identificação aos próprios saberes.

Existem experiências da aliança entre “medicina popular” e “medicina científica” em vários municípios no Brasil que compreenderam os benefícios de integrar os saberes populares no combate às doenças. Em Maranguape, Ceará, por exemplo, em 2012, desenvolveu-se ação com médicos do Programa Saúde da Família com as benzedeiras no combate à mortalidade infantil. Rebouças e São João do Triunfo, Paraná, foram os primeiros municípios a regulamentar o ofício tradicional de medicina popular das benzedeiras, com direito a carteira emitida pela Secretaria Municipal de Saúde. São alguns exemplos do reconhecimento que, simbólica e felizmente, perpetuam-se e espalham-se pelo Brasil. Trata-se de rica expressão do patrimônio imaterial brasileira que merece melhor olhar e tratamento do poder público e sociedade.

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