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Intolerância religiosa: religião e ódio de mãos dadas
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Historiador, pesquisador, escritor, editor do O POVO.Doc e ex-editor de Opinião do O POVO

Intolerância religiosa: religião e ódio de mãos dadas

Uma das marcas atuais no mundo passa por registros de intolerância religiosa em diversos lugares do planeta. São agressões praticadas, permitidas, incentivadas e acobertadas por diversas nações, religiões e pessoas contrárias ao princípio de livre escolha e exercício da liberdade religiosa
Tipo Análise
Material usado em rituais e celebrações do candomblé (Foto: THAIS MESQUITA)
Foto: THAIS MESQUITA Material usado em rituais e celebrações do candomblé

A ligação com o sobrenatural, o espiritual, o divino vêm desde a Antiguidade, possui diversos formatos ao longo da História nas várias civilizações que foram surgindo até resultarem no que temos hoje. Paralelamente, na longa jornada da humanidade a dominação religiosa também esteve presente, defendida pelos donos do poder envolvidos na manutenção do establishment. Ou seja, quem controlava ou aliava-se à religião dominante colhia e manipulava o poder. O filósofo alemão Karl Marx considerava a religião o ópio do povo, penso que a manipulação de qualquer forma de poder (religiosa, jurídica, legislativa, militar, política...) depende de como é constituído e regido.

Na sua origem, o cristianismo foi perseguido pelo Império Romano. Na Idade Média, as cruzadas e a inquisição católica perseguiram “feiticeiros, bruxas, infiéis e judeus”. Protestantes foram perseguidos pelos católicos na Idade Moderna. Com os grandes descobrimentos as nações europeias adotaram a escravidão dos africanos e perseguiram suas religiões. Estados que adotaram o islamismo impõem única fé e punição a quem ouse professar outra religião.

A História é repleta de relatos das atrocidades praticadas em nome da fé, e, infelizmente, continuam a ocorrer. O Iluminismo e a Revolução Francesa representa a primeira inflexão no sentido de respeitar a livre religiosidade, a partir dos conceitos de liberdade e igualdade. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, pode representar um dos primeiros documentos a expressar a liberdade das crenças religiosas.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, criação da Organização das Nações Unidas (ONU), ecoou no mundo na defesa institucional da liberdade religiosa como direito de todos. Elaborado pela ONU, em 1951, o Estatuto do Refugiado proíbe a discriminação de pessoas refugiadas por motivos de religião e obriga os Estados a garantir sua liberdade religiosa. Em 1966, também pela ONU, foi criado o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, assegurando a liberdade religiosa como um direito. A Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1969, adotou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, garantindo a livre manifestação religiosa nos seus Estados membros. Em 1981, foi aprovada pela ONU a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, que considera a intolerância religiosa uma violação dos direitos humanos e, desde que não interfiram nas leis locais, o Estado não deve interferir na religiosidade das pessoas e organizações religiosas. Em 1992 foi criada a Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas ou Linguísticas. Foi elaborado pela Unesco, em 1995, a Declaração dos Princípios sobre a Tolerância, dentre suas diretrizes estabelece orientações para erradicação da intolerância religiosa no mundo. A Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 2005, através da Resolução 2005/40, encaminha que os Estados combatam toda forma de violação da liberdade religiosa.

O advento da República no Brasil tornou o país em Estado laico, ou seja, definiu-se o fim da interferência religiosa nas políticas da nação. Mas, foi e continua sendo tortuosa, conflitante e nebulosa a interferência da religião no Estado brasileiro. Vide na eleição presidencial a mobilização de pastores junto à parcela das igrejas evangélicas em favor de Jair Bolsonaro e o aparelhamento religioso do seu governo com pautas e “vantagens” voltadas a este público, aí incluindo a escolha de um ministro “terrivelmente evangélico” na pessoa de André Mendonça como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

O Brasil é um país multicultural, está na sua gênese desde a fundação. Mas, assim como nas mazelas e apartamento social, a intolerância religiosa brasileira está diretamente relacionada ao racismo, por ser a população negra a maioria dos praticantes das religiões de matriz africana.

Sugiro a leitura do II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, de janeiro de 2023, organizado pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas e pelo Observatório das Liberdades Religiosas com apoio da Unesco no Brasil. Aponta o crescimento dos crimes de intolerância religiosa no Brasil nos últimos anos. Por exemplo, em 2021 foram 583 casos registrados, em 2022 foram 1.200.

Os casos de intolerância religiosa são subnotificados no Brasil por diversos fatores. Desconhecimento e descrença nos canais de denúncia, constrangimento, mau atendimento nas delegacias, falta de retorno e, principalmente, impunidade. No Ceará, em 15 de fevereiro de 2023, foi inaugurada a Delegacia de Repressão aos Crimes de Discriminação Racial, Religiosa ou de Orientação Sexual (Decrim) com objetivo de investigar casos de preconceito e discriminação nas áreas racial, religiosa e orientação sexual. A iniciativa é louvável, mas é pouco, que mais delegacias com esta proposta sejam criadas e as demais passem por cursos e acompanhamentos para melhor atender quem sofre com esses crimes.

A Constituição de 1988, expressa no capítulo 1, artigo 5º, inciso VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Em 13 de maio de 1997 foi assinada a Lei 9.459 que prevê punição dos crimes de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. O presidente Lula, em 11 de janeiro de 2023, sancionou lei que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, que é inafiançável e imprescritível. Um novo horizonte se abre na nova gestão do governo federal ao ser propositivo no enfrentamento desse câncer que corrói a sociedade brasileira e se propõe agir contra a intolerância religiosa.

Duas datas entraram no calendário brasileiro simbolizando a relevância das religiões de matriz africana para o Brasil. 21 de janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, homenageia Mãe Gilda de Ogum (Gildásia dos Santos e Santos), Iyalorixá baiana e fundadora do Ylê Axé Abassá de Ogum, que se tornou símbolo da resistência das religiões de matriz africana e teve sua casa e terreiro invadido e vandalizado por representantes de outra religião. 21 de março é o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé que representa o combate contra o racismo e a intolerância religiosa.

Implementar cada vez mais políticas públicas e ações educativas voltadas à liberdade e respeito às diversas crenças é fundamental para reverter este quadro intolerável de crime e apagamento religioso.

Foto do Sérgio Falcão

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