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Apresentar uma metáfora
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Apresentar uma metáfora

Tipo Crônica

Existem as coisas planejadas, calculadas, traçadas com a precisão das réguas. E existem, felizmente, as surpresas que brotam como flor na pedra, no asfalto. O plano era organizar uma breve aula sobre composição musical com Moreno Veloso em uma noite de quarta-feira. Saber do que vem primeiro, a letra ou a canção; se chegam juntas; se nascem dos sonhos; como funcionam as parcerias, os pedidos, os presentes musicais.

A música é poesia e comecei perguntando sobre os poetas favoritos do compositor. Primeiro ele recitou um pedacinho de Emily Dickson: "Este mundo é inconcluso/ Além, há continuação/ Invisível como a música/ Evidente como o som".

E da evidência do som passamos a falar do peso da luz, pois Moreno é formado em física. O peso que vibra, como diz sua canção "Tudo ao redor".

Foi dessa ponte das ciências exatas da poesia que chegamos em João Cabral de Melo Neto. Moreno contou, muito tranquilamente, que ganhou "Cão sem Plumas" de presente do poeta e sabia repetir os versos de memória. Depois falou que foi a Sevilla e teve como guia a poesia de João Cabral. Quando o encontrou de novo, contou que não viu mais a mesma cidade descrita no livro "Sevilla andando".

João Cabral rapidamente desenhou um mapa de Sevilla e explicou todos os traços e rotas, o rio que não é mais rio, os canais, as transformações que não foram apagadas porque sua poesia registrou. O poeta pernambucano dizia que uma de suas maiores influências era a arquitetura de Le Corbusier e um de seus melhores amigos era Joaquim Cardozo, calculista de Niemeyer. Sua poesia era planejada e certa, sempre faca e pedra.

Em 2020 João Cabral de Melo Neto faria 100 anos. Um dos melhores trabalhos produzidos sobre sua vida e obra é o Caderno de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Sales, todo dedicado a ele e disponível para consulta livre pelo site. O volume foi preparado quando ele ainda estava vivo e o processo o aborreceu. Não gostava de homenagens, estava cansado e chateado com a visão indo embora, com o peso da velhice. Disse que a aposentadoria chegou justo quando estava mais preparado para o trabalho.

Na entrevista, ponto principal da publicação, ele parece mesmo muito direto e firme, como Moreno descreveu e muito seguro de suas tarefas na vida. Segundo ele, seu trabalho como poeta passava pela ideia de apresentar uma metáfora, discuti-la, associar a outra, negá-la de novo, uma consciência da poesia. Disse que alguns poetas escrevem pela escassez, porque precisam preencher algo. Outros escrevem por excesso, que transbordam. Ele se enxergava no time dos escassos.

Além de poeta foi também dono de uma editora, Livro inconsútil e publicou 14 títulos entre 1947 e 1950. Era leitor de Freud, fascinado pela psicanálise e acreditava que o inconsciente não é metafísico, é parte concreta do ser. Além de falar do rio de Sevilla, traçou o Rio Capibaribe com poesia no "Cão sem plumas", o presente do Moreno. Como costumava dizer: "a diplomacia me fez sair de Pernambuco, mas a poesia jamais me tirou de Pernambuco". A poesia como lugar, canoa e travessia. Que os rios brasileiros persistam na nossa literatura, cada curso de água é uma nova esperança.

Foto do Socorro Acioli

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