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Para sempre
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Para sempre

Em 1925, dois franceses inventaram uma linha de panelas com garantia infinita. Duram para sempre. Ferro fundido por dentro, pintura esmaltada por fora. Não quebra, não deforma, impossível destruir. Perfeitas para cozimentos lentos, para levar ao forno e depois à mesa. Aos poucos ficaram mais bonitas, com cores diferentes que rendem homenagens ao céu, às cerejas, aos tons que a natureza oferece.

As tais panelas viraram uma marca dos objetos que atravessam as histórias das famílias, das bisavós para bisnetas, cozinhando de acordo com as condições do seu tempo. Atravessaram uma grande guerra e permanecem até hoje, em plena pandemia, catástrofe dos novos tempos. Assistem às mudanças do mundo nas mãos das mulheres.

Gosto igualmente das panelas de barro capixabas, feitas de lama negra, queimadas, irregulares, perfeitas para o cozimento da moqueca sem dendê. São igualmente lindas as do barro cearense, com as peças de renda de bilro por fora, a marca do nosso lugar, de quem somos. A renda que vem de Portugal, o barro dos utensílios dos povos originários, uma reverência.

Para cozinhar arroz, a melhor de todas é a de pedra sabão, que vem de Minas Gerais. Exige um cuidado especial para não rachar, é preciso tratar com azeite, aquecer bem, fazer um processo de cura bem demorado para garantir que ela não abra uma veia em contato com o calor do fogo. Fiz isso tudo e a minha rachou, mesmo assim. Acho que o problema é não ser mineira.

Já ganhei de presente todas essas panelas, menos a de barro com renda. Essa é muito especial para mim. Gostaria de ver de perto a arte delicada de trançar o bilro, depois colar por fora, destacar, deixar queimar, pintar os sulcos de branco com pincel fino, pensando no tempo imenso que existe desde que a primeira peça foi feita até hoje.

É provável que um dia eu escreva um livro de culinária. Talvez mais velha, quando a vida der uma trégua em suas urgências. Quero contar das receitas que aprendi nos lugares onde andei e com as mãos de amigas e amigos que voltam para perto de mim sempre que eu preparo algo que me ensinaram. As comidas não valem de nada sem pessoas por perto.

Ganhei uma panela nova essa semana, do meu amigo Vitor. Chegou de surpresa, da cor do céu da França. Vai durar para sempre. Tem sido difícil planejar o futuro. Não sabemos quando chegará a vacina, se vai dar certo, quantas ondas de vírus teremos de enfrentar. Fiz um jantar com minha panela nova, pensando no que é perene nessa vida. Poucas coisas, ainda mais agora que descobrimos que quase nada tem rumo certo. Mia Couto disse e muita gente repete: cozinhar é um ato de amor. Juntando uma ideia com outra, posso dizer que as pessoas que trabalham com as panelas ajudam a melhorar o mundo. Um pouco por dia.

Foto do Socorro Acioli

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