Logo O POVO+
Caçar histórias
Foto de Socorro Acioli
clique para exibir bio do colunista

Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Caçar histórias

No léxico do sertão, procurar é caçar. O complemento verbal varia entre antípodas, vai desde caçar a chinela até caçar confusão, do prosaico ao abstrato. Acho a substituição sábia, a atitude ganha força. Quem diz que procura pode se acomodar, olhar em volta, desistir fácil. Procurar é pouco.

Quem se propõe à caça vai com gosto, com sangue no olho e não se conforma em voltar da empreitada de mãos abanando. Caçar é um verbo bonito, é por causa dele que estamos todos aqui. Quem vive só procurando, ou só recebendo o que a vida manda, tende a perder as forças aos poucos.

Por isso eu admiro meu amigo Iury Costa, porque ele é um caçador de histórias. No jornalismo a função que ele exerce é chamada de Pauteiro, quem pesquisa e propõe pautas para os jornais. Mas na minha humilde opinião, o nome não dá conta do esforço que ele faz em busca de narrativas.

Um dia eu resolvi ajudar. Vi o esforço do rapaz conversando com os amigos em busca de pessoas que pudessem conceder entrevistas sobre alguns temas do cotidiano no meio da pandemia. Estamos monotemáticos, só falamos mais ou menos das mesmas coisas: vírus, álcool em gel, vacina, cloroquina, a ema corajosa, além das estatísticas tão dolorosas sobre doentes e mortos.

Outras camadas da vida também estão acontecendo, enquanto o mundo gira. Por isso eu dei umas ideias para o Iury. De vez em quando ele nos pergunta se alguém conhece alguém que tenha passado por tal situação específica: que esteja fazendo Enem, que assista aulas virtuais, coisas assim. Achei por bem ajudar meu amigo a procurar o inusitado da vida, por isso comecei a propor uns absurdos. Ele poderia perguntar, por exemplo:

Alguém conhece alguém que quebrou a dentadura durante a quarentena e não encontrou lugar para consertar? É uma situação complexa, mas vai que a pessoa percebe que a vida é mais prática e livre sem os dentes e nunca mais volta a usar? Assume a condição de desdentado com orgulho, economiza dinheiro, abraça a liberdade? Seria um final feliz.

Outra ideia seria: alguém conhece alguém que pediu tanta comida por aplicativo que acabou se apaixonando pelo entregador? O pior é que eu disse isso de brincadeira e fiquei sabendo de vários casos. Disseram até que aplicativo de comida é o novo Disque Amizade. Em um dos casos, uma moça afeiçoou-se ao entregador do gás. Cozinhando em casa diariamente na quarentena, o botijão acaba mais rápido, tem acontecido muito. Papo vai, papo vem, a paixão inflamou e a moça acabou engravidando. Soube que estão felizes.

Alguém conhece alguém que praticamente parou de comer por preguiça de passar álcool nas compras? Perguntei rindo, mas também aconteceu. O rapaz já emagreceu quinze quilos e economizou um bom dinheiro. Aproveitou para começar a fazer exercícios pelo YouTube e está pronto para sair da quarentena completamente renovado, magro, malhado e com grana no banco.

Caçar histórias é um talento. Não precisa ser escritor ou jornalista para fazer isso, basta gostar de olhar ao redor, prestar atenção em como o mundo é grande e como cabem tantas vidas diferentes no mesmo lugar. Alguém conhece alguém que caça histórias por aí?

Leia também | Leia mais crônicas da escritora Socorro Acioli 

Foto do Socorro Acioli

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?