Logo O POVO+
Bazar da coisa azul
Foto de Socorro Acioli
clique para exibir bio do colunista

Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Bazar da coisa azul

Tipo Crônica

Deve existir algum estudo que explique porque as músicas alegres da infância continuam acendendo a alma para o resto da vida. Há uma categoria de canções no repertório pessoal que trazem o sol para qualquer dia ruim. Uma das principais do meu cancioneiro da salvação é "Zanzibar", com melodia de Armandinho e letra de Fausto Nilo.

Se minha memória não falha - o que na literatura não é erro, é criação - eu ouvi essa música pela primeira vez em 1980, aos cinco anos de idade. Era um videoclipe no Fantástico, uma combinação de imagens fascinantes dos rapazes da Cor do Som, jovens e bonitos, pelo Rio de Janeiro. Pude reviver o momento graças ao YouTube. Achei graça dos comentários de quem escuta "Zanzibar" hoje em dia, dizendo que não faz sentido. Pois eu entendo tudo, sempre entendi. É assim:

"No azul de Jezebel, no céu de Calcutá, feliz constelação reluz no corpo dela.

Ai, tricolor colar. Ás de Maracatu, no azul de Zanzibar. Ali, meu coração, zumbiu no gozo dela. Ai, mina, aperta minha mão. Alá! Meu Only You! No azul da estrela

Aliás, bazar da coisa azul, meu Only You, é muito mais que o azul de Zanzibar.

Paracuru no azul da estrela."

Uma junção luminosa de ideias - a melhor definição de poesia que já ouvi. Alterei a pontuação para escrever em formato de um parágrafo, mas só quando as palavras são combinadas com a melodia acontece a mágica. Pelo que sei foi o Armandinho que criou a canção primeiro, lá no Bonfim baiano, mostrou para o Fausto Nilo e ele escreveu a letra.

Vi uma entrevista do Armandinho contando que perguntou ao Fausto Nilo o significado dos versos e sua resposta foi genial: "da forma que você entender é que é". Pois eu entendo e canto feliz há anos. Sorte minha, combina bem com meu timbre de voz.

Enquanto escuto a geografia da canção eu encontro um rio, um mar e dois oceanos. Calcutá recebe o Ganges no Golfo de Bengala, diante do Oceano Índico. Por Jezebel, amaldiçoada rainha dos Fenícios, enxergo o lindo azul do Mar Mediterrâneo. Em Zanzibar, a costa leste do continente africano, um pedaço deslumbrante de mundo. Ouvidos afiados identificam Ponto de Santo nos tambores baianos, nesta música não é diferente, o Ás do Maracatu, as forças todas irmanadas. E em Paracuru, nosso Atlântico da vida inteira.

Depois vem o amor. Que coisa mais linda chamar alguém de meu only you, quase um dengo, um pedido nas mãos, um delírio que só conhece quem amou. No fim das contas eu penso que a música toda é um encontro apaixonado. Qual outro estado da existência nos faz enxergar múltiplas estrelas felizes reluzindo em um corpo?

Chega, então, minha frase preferida: bazar da coisa azul. É aí que sinto meu coração zumbir. Por causa desta frase, há anos tenho vontade de escrever a história de uma loja centenária, perto do mar, que só venda objetos azuis. Qualquer coisa, contanto que seja desta cor, em qualquer tom. Eu enxergo a loja, o homem, as nuances infinitas, sinto o cheiro como se eu já estivesse lá dentro. Se algum dia o Fausto autorizar eu escrevo esse delírio que me acompanha desde a infância. Um delírio azul.

Leia também | Confira outras crônicas exclusivas de Socorro Acioli para o Vida&Arte clicando aqui

Foto do Socorro Acioli

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?