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Olha pro caminho que vem
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Olha pro caminho que vem

Tipo Crônica

Durante a pesquisa sobre a vida de Frei Tito de Alencar Lima, conheci muito de perto a Ordem dos Pregadores no Brasil, os frades dominicanos. Ao final do nome de cada um deles há a sigla OP, um compromisso com palavra como instrumento de transformação. Desses encontros aprendi muito com a sabedoria de pessoas dedicados às causas sociais, com os olhos voltados para os que estão invisíveis, esquecidos, à margem de um modelo de vida que contamina a todos nós, gradativamente, com a cegueira coletiva que José Saramago definiu tão bem no seu Ensaio sobre a cegueira.

Passei um dia inteiro com Frei Carlos Josaphat Pinto de Almeida visitando e pesquisando na sua biblioteca, em uma das casas dos dominicanos em São Paulo. A sala de livros ficava em uma edícula e, no meio da tarde, ele me flagrou lendo deitada em um grande travesseirão verde que no chão da biblioteca. Diante do meu constrangimento ele me parabenizou por conhecer e praticar o que chama de Vida Contemplativa, ter um tempo diário para descansar o corpo e deixar o pensamento percorrer livres caminhos. Naquela hora da minha vida contemplativa, eu estava lendo Paulo Freire.

Lilian Contrera, a atual secretária do Frei Carlos Josaphat, ex- secretária do Frei Betto, tinha sido também a assistente de Paulo Freire até o fim da sua vida. Naqueles meses eu estava completamente envolvida por suas ideias, pensando na força da palavra como caminho revolucionário e perguntei para ela como foi o convívio. Pura doçura, a começar pela entrevista de emprego. Ela levou o currículo, alguns documentos comprobatórios, mas ele não quis ver, apenas escutava. Falou sobre suas experiências anteriores, mas ele não fez qualquer pergunta. Quando achava que não conseguiria o emprego, perguntou se não gostaria de dar uma olhada nos papéis que trouxe, mas ele respondeu:

- Minha filha, se a essa altura eu não soubesse conhecer uma pessoa pelos olhos, minha vida não teria valido de nada.

Todo minuto que dediquei e dedicarei às salas de aula, falando de literatura e escrita, ele estará comigo na sua tradução para o par de palavras Ética e Estética: para Paulo Freire, é decência e boniteza. O trabalho de educar, tirar de dentro, nada mais é do que um encontro de experiências. Os alunos e alunas me procuram para saber o que eu sei, na espera da partilha do meu olhar. É o que sempre encontram. A literatura nada mais é que a leitura do mundo transformada em palavras. Aprendi com ele.

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Ao reler o artigo "A importância do ato de ler", percebi que quando Paulo Freire fala da sua própria experiência de leitura de mundo na infância, ele relembra sua casa, plantas, pássaros e cita um deles de que nunca ouvi falar: olha-pro-caminho-que-vem. Descobri que isso é o canto do Pitiguari, graças à internet pude ouvir, por alguns minutos, um dos sons da infância de Paulo Freire, a música do seu mundo.

No dia do seu aniversário de 99 anos, somo minha homenagem às muitas que ele já recebeu e receberá em todo planeta. Seu legado é cada vez mais necessário no Brasil, especialmente no momento que vivemos. Vou seguir o conselho do passarinho que o menino Paulo ouviu e nos contou: olha o caminho que vem. Ter esperanças, apesar de tudo. Que a palavra seja nossa arma e que a decência e a boniteza sejam as nossas leis.

Foto do Socorro Acioli

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