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A bruxa pisciana e o cronópio
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

A bruxa pisciana e o cronópio

Tipo Crônica

Mario Vargas Llosa escreveu uma das mais completas definições sobre a felicidade possível entre um homem e uma mulher. Não está em nenhum de seus livros, mas na introdução ao primeiro volume da obra completa de Júlio Cortázar, pela editora argentina Puncto de Lectura. O que ele descreveu foi a sensação que teve quando encontrava Júlio com sua esposa, a tradutora argentina Aurora Bernárdez:

"Nunca deixou de me encantar o espetáculo que significava ver e ouvir Júlio e Aurora conversando em tandem. Todos os demais pareciam sobrar. Tudo o que diziam era inteligente, culto, divertido, vital. Muitas vezes pensei: 'Não podem ser sempre assim. Eles ensaiam essas conversas em sua casa, para deslumbrar os interlocutores com as anedotas inusitadas, as citações brilhantíssimas e essas brincadeiras que lançam nos momentos oportunos. Passavam os assuntos de um para o outro como dois experientes malabaristas e ninguém ficava entediado com eles. A cumplicidade perfeita, a inteligência secreta que parecia uni-los era algo que eu admirava e invejava no casal, tanto quanto sua simpatia e seu compromisso com a literatura. (...) Era difícil determinar quem tinha lido mais e melhor e qual dos dois dizia as coisas mais inesperadas e agudas sobre livros e autores".

Tandem é o nome das bicicletas de dois lugares, duas rodas, quatro pedais. Só é possível andar em uma dessas se o par de ciclistas estiver perfeitamente sincronizado. Se de vez em quando um assumir sozinho os pedais para que o outro descanse, se estiverem de acordo sobre o rumo a seguir, para onde querem ir, em qual velocidade, com ajustes nas diferenças de ritmo e força.

Aurora tomou seu primeiro café com Júlio quando ele ainda era um escritor pouco conhecido. Seu encanto por ele veio primeiro pelas palavras, quando leu o conto "A casa tomada", uma paixão iniciada da literatura rumo ao corpo.

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O primeiro conto publicado por Júlio Cortázar chama-se "A bruxa". É a história de uma mulher muito poderosa, que descobre por um acaso que pode construir qualquer coisa, realizar qualquer desejo. Ela mora em um povoado muito pequeno, vive isolada em uma casa onde tem tudo o que quer, porque ela mesma faz acontecer os seus sonhos.

Cortázar estava com Aurora quando escreveu "Rayuela", sua grande obra. Tinha como uma de suas personagens a maga Lúcia. Ele gostava de bruxas e de magas, de mulheres que exerciam seu poder com jogos, palavras, alegrias secretas, toques à distância, mistérios sem explicação. Aurora foi a maior. Foi para ela que ele deixou tudo: o amor, a obra, os melhores anos e escritos de sua vida, os últimos minutos da morte. Cuidaram um do outro unidos por uma paixão alicerçada na literatura, a maior bruxaria de todas.

Estou lendo "O livro de Aurora", uma reunião de seus poemas, escritos e de uma importante entrevista. Ler Aurora para reencontrar Cortázar, aprender sobre essa mágica que Llosa relatou. "Encherás as palavras de ti mesmo" é a lei de um dos seus poemas. É disso que se tratou o amor indestrutível entre a bruxa pisciana e o cronópio: encher as palavras com alma e fogo, a dois, como experientes malabaristas.

Foto do Socorro Acioli

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