Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro
Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro
Um dia eu ouvi dizer que comemorar quinze anos com baile de debutante é a forma de uma família apresentar a filha à sociedade. Eu tinha quinze anos e não teria baile algum. A pessoa que me disse isso explicou que existe a sociedade e existe o povo, por isso o limite entre uma coisa e outra precisava ser bem demarcado. Por sociedade ela queria dizer elite, foi um uso equivocado da palavra. Ela estava organizando o baile de sua filha em um clube da cidade. Rapazes do colégio militar dançariam fardados com as quinze amigas da moça, todas vestidas iguais, usando o rosa mais puro. A debutante entraria de branco e brilhos, aplaudida, louvada, apresentada.
Não consegui traduzir, naquela altura, a perturbação que senti com as palavras daquela senhora. Nunca me pareceu importante essa forma de apresentação. Não foi disso que precisei, nem que minha filha precisou quando fizemos nossos quinze anos. A melhor coisa que se pode viver nessa fase é uma clareza na busca pelo propósito de cada vida. Preencher a alma do que alimenta, do que sustenta. Ter alguém por perto que ajude a dizer no que somos bons, quais os nossos talentos e pontos de força.
Tenho pensado nisso por causa de uma moça chamada Nice Sales, que vai fazer quinze anos semana que vem. No ano da pandemia ela decidiu ler Percy Jackson, a coleção de livros para jovens inspirada na mitologia. Daí entendeu que precisava deixar algo permanente no mundo. Deixar algo que permaneça para além da finitude da vida.
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Ela começou pela música, tocando instrumentos, compondo canções, o que já é uma forma de brincar com o eterno. O encontro com a arte tão cedo amplia a capacidade de enxergar que o mundo é grande, é imenso, tão cheio de beleza quanto de dor. E o que fazemos com a dor do outro? Onde ela cabe na nossa vida?
E assim Nice entendeu que, nos seus quinze anos, ela desejava chegar perto de quem precisa. Sua festa virou uma celebração virtual da vida, com o objetivo de arrecadar dinheiro para construção de um espaço de arte e cultura para crianças e jovens no bairro do Quintino Cunha, em Fortaleza.
No dia 27 de novembro a Nice vai ser apresentada a quem ainda não a conhece como uma jovem que enxergou seu lugar como mulher, como cidadã, artista, sujeito responsável por multiplicar os sortes que ganhou na vida e distribuir com quem precisa. Não é caridade, é outra condução de energia muito mais ampla. Não é olhar para minorias, porque os pobres, negros e mulheres no Brasil são metade ou maioria da população.
Eu gostaria de brincar de máquina do tempo e fazer o encontro da Nice com a senhora que me falou que existe sociedade (elite) e existe o povo. A Nice é doce e forte. Ela explicaria que não é assim. Que somos seres humanos, testemunhas e vítimas das mesmas alegrias e desgraças. Viver de verdade é deixar uma marca permanente na tentativa de equilibrar um pouco os rasgos da desigualdade que atinge a todos. Ver a Nice assim, de olhos abertos para a verdade, enche nosso coração de esperança. A menina de quinze anos que eu fui agradece à Nice por explicar o que, naquela altura, eu não consegui entender: o sentido da arte é ser elo. O sentido de existir é ser ponte.
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